sábado, 19 de dezembro de 2009

LENDAS E INTERPRETAÇÕES

Estava eu lendo uma tese sobre a construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, trecho paulista, entre 1906 e 1910. Já li livros sobre as construções da São Paulo-Rio Grande, tanto no trecho paranaense (que se deu entre 1899 e 1905) e catarinense (entre 1907 e 1910) e da Madeira-Mamoré, ocorrido entre 1908 e 1912. Houve também a construção da E. F. de Baturité, no Ceará, que se prolongou desde os anos 1870 até 1920.

Se as mortes ocorridas em todas essas construções, que se deveram em grande parte à malária, ataque de índios e seca (no Nordeste), e os problemas de pagamento dos funcionários (principalmente no trecho paranaense da SP-RG) tivessem ocorrido hoje, provavelmente nenhuma estrada de ferro teria sido construída – logo no início, a construção teria sido suspensa em regiões em que era (pelo menos naquela época) impossível de se evitar a presença da malária, dos índios e da seca. Já a falta de pagamento era sem-vergonhice mesmo.

O caso mais conhecido, inclusive em escala mundial, é o da Madeira-Mamoré. Já houve livros e uma minissérie (esta demasiadamente fantasiosa, citando diversos fatos totalmente inverídicos) na TV que trataram do assunto. Já os da Noroeste, da Baturité e do trecho catarinense da SP-RG são bem menos conhecidos, com textos até hoje pouco divulgados. O menos conhecido é a construção do trecho paranaense da SP-RG, que envolveu um capitalista de família francesa de Petrópolis que recebia dinheiro do Governo Federal e não repassava para os operários da estrada, que sabe Deus por quê, continuaram trabalhando, tendo entregado a ferrovia pronta em 1905.

Não foram os únicos casos de construções com grande número de mortes e mal administradas, mas vou me ater a somente estas nestas poucas linhas. A pergunta que faço é: seriam as construções dessas ferrovias viáveis se não fossem feitas da forma que foram e com tão poucos cuidados e garantias aos funcionários? E é sempre bom lembrar que, apesar de serem tempos bem diferentes, não faltaram na época denúncias do que estava acontecendo em todas essas frentes. Poucos ligavam para o que estavam sofrendo esses trabalhadores, vindos de todos os cantos em busca de trabalho. Talvez até considerassem tudo isso lenda, pois, afinal, o que tinham com isso?

Então, considerar Farquhar, Teixeira Soares, Roxo Roiz, Hector Legru (houve outros nomes, só nesses casos) e seus capatazes, estrangeiros ou brasileiros, culpados de morticínio por terem construído essas ferrovias é inútil: quando elas foram abertas, trecho a trecho, as notícias no jornal retratavam festas e júbilo por parte das populações, que estavam, sim, muito contentes por ter sido tiradas do isolamento secular a que estavam segregadas.

Os trabalhadores que se danassem. Afinal, foram para lá porque quiseram e não eram certamente masoquistas. Eles provavelmente sabiam que tudo era mata virgem, ou terra árida (no Nordeste), que havia índios, que havia malária — ou talvez nem quisessem saber, pois precisavam de emprego para poder viver. Se sobreviveriam ao emprego, era outro problema.

Hoje esse tipo de denúncia certamente pararia e inviabilizaria as obras. Naquele tempo, se parassem, teriam atrasado o desenvolvimento do país, que deveria vir ao custo dessas mortes, dos cortes da mata e da matança de bugres. Toda esta desgraça justifica o desenvolvimento do Brasil? Está aí uma pergunta cuja resposta mostrará o quão hipócritas ou realistas cada um de nós é.

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