O ano era 1961. Em frente à casa da rua Domingos de Morais, 300, as pessoas que andavam a pé cruzando a pequena rua Doutor Eduardo Martinelli paravam, incrédulas, ao ver que a bela casa que tinha nome – Vila Kyrial – estava sendo posta abaixo. Sua demolição era algo que parecia inimaginável até pouco tempo antes, mas aparentemente ninguém reclamava, apenas lamentava. O terreno era grande. Ia da Domingos até a rua Cubatão, e pelo seu lado direito acompanhava toda a pequena travessa, que faz uma curva em S entre as duas ruas.
Seu dono, o gaúcho de Alegrete Freitas Valle, havia falecido três anos antes. Dois anos depois, a casa foi vendida para a Construtora Joelma – aquela, do prédio que sofreu um catastrófico incêndio em 1974 (castigo dos deuses?). Esta demoliu rapidinho a casa para fazer um prédio de apartamentos que existe lá até hoje (detesto qualquer prédio de apartamentos).
Com tanta história, bela arquitetura, construída em 1897 por alemães e vendida em 1904 para Freitas Valle, que a renomeou de “Vila Gerda” para “Vila Kyrial”, foi sede de saraus e até de esposições culturais durante todo esse tempo e que atraíam pessoas do Brasil inteiro e até de fora, elevando o nome do antigo bairro rural da Vila Mariana e trazendo mais gente de posses para povoar o bairro.
Do livro O Caderno de São Paulo, de 1978: “Até o fim dos anos 1920, houve em São Paulo o hábito dos salões literários, realizados semanalmente ou de 15 em 15 dias. Talvez o mais famoso tenha sido o de D. Olívia Guedes Penteado, que promoveu bailes modernistas (...), mas houve outro igualmente importante: o do Senador Freitas Valle. (...) Recebia dois grupos diversos. Um, constituído basicamente por políticos, que vinham jantar semanalmente: Washington Luiz, Altino Arantes, Júlio Prestes, Carlos de Campos. (...) Nos domingos, havia o almoço dos artistas. (...) Mas foi o ciclo de conferências – que constituiu o salão propriamente dito – que celebrizou a Vila Kyrial; todo ano, por volta de março, havia uma série de palestras, sempre às quartas-feiras; eram feitas na galeria, construída por volta de 1910 especialmente para os quadros, e contava com a presença de Mario de Andrade, Guilherme de Almeida, Oswald de Andrade, Lasar Segall, Anita Malfatti, Tarsila, Picarollo”.
Mas por que terá a casa sido vendida? Teriam os herdeiros dificuldades financeiras ou simplesmente achavam a casa de mais de sessenta anos uma velharia inútil? O fato é que, numa época em que São Paulo ainda considerava que “coisa velha não podia conviver com a modernidade”, ela foi para o chão. Um desastre. Na verdade, as primeiras tímidas tentativas de preservação de imóveis ameaçados de demolição começaram a ocorrer somente nos anos 1970. O primeiro do qual me lembro foi a tentativa de impedir a demolição da Vila Fortunata, na avenida Paulista, no ano de 1972. Tentativa infrutífera: ela foi para o chão. Sobrou o terreno, no qual atualmente está se montando um pequeno parque na esquina da alameda Ministro Rocha Azevedo.
Existe um livro que li ontem muito rapidamente (folheei em 10 minutos, portanto não foi uma lida realmente boa) que conta a história da Vila Kyrial. Foi editado em 2001, mas eu jamais o havia visto: Villa Kyrial - Crônica da Belle Époque paulistana de Márcia Camargos. Eu, entretanto, já sabia da Vila Kyrial e de sua importância para a vida cultural da cidade de São Paulo por causa de um outro livro que falava sobre ela, publicado nos anos 1970 e o qual possuo, A Cidade.
Sobraram algumas fotografias, uma delas publicada no livro O Caderno de São Paulo, que na verdade é um dos dois livros que compõe o livro de 1978. Está retratada acima.
quarta-feira, 2 de setembro de 2009
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Excelente texto.
ResponderExcluirA Vila Kyrial se foi e deixou muitas saudades.
Ela foi bastante retratada (e também suas festas e saraus) na minissérie "Um Só Coração" da TV Globo.
O livro "São Paulo 450 anos luz" comenta brevemente sobre a vila Kyrial e o senador Freitas Valle.
ResponderExcluirPenso que a Villa Kyrial deverá ser sempre lembrada como ambiente acolhedor; que seu grande animador e chefe Freitas Vale, o mecenas, personagem injustamente esquecida, obtenha o devido valor pela sua contribuição na história cultural de São Paulo.
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