quinta-feira, 22 de abril de 2010

O HOMEM QUE NÃO DEVIA MORRER

Rua da Consolação sendo duplicada, em 1967. Foto Diário de S. Paulo

Um de meus amigos de infância tinha um sogro que se chamava Irineu. Era um grande sujeito: conheci-o há uns 35 anos e ele faleceu há uns quatro, infelizmente. Era um excelente marceneiro, além de empresário. Nasceu na rua Conde de Irajá, na Vila Mariana. Esta era a rua que, pelo menos quando ele era menino, dividia a rua Vergueiro da Estrada do Vergueiro. Hoje é tudo rua Vergueiro.

Quando se casou foi morar numa casa com sua esposa, na avenida Nove de Julho. Uma casa de estilo normando, telhado alto e "pontudo", para que, se caísse neve, escorreria tudo para o chão sem fazer peso — como se aqui nevasse, mas era o estilo, fazer o quê? Não me lembro direito, mas creio que a casa era da família da esposa dele e esta, sim, passou a infância lá. Ele — ou ela — contava que a rua era estreita (era a Salvador Pires), depois foi alargada (em 1942) para se fazer a avenida que saía do túnel alcançar a Brasil. Ela andava de bicicleta na rua.

Quando eu os conheci, já era difícil entrar com o carro na garagem, com os ônibus subindo a avenida e encostando na traseira do seu carro, que tinha de quase parar para fazer uma curva de noventa graus para entrar na garagem. Quando outras pessoas iam lá e entravam na garagem para estacionar o carro, havia que se telefonar antes para que eles abrissem os portões enormes de madeira e a gente pudesse entrar rápido com o carro antes de levar uma bordoada por trás.

Durou anos, mas por volta do ano 2000 eles conseguiram vender a casa e se mudar para São José dos Campos, onde estavam morando a filha e o genro já havia uns dez anos. No lugar da casa e de mais uma vizinha pelo menos, foi construído o hotel Formule 1 entre a Lorena e a rua Estados Unidos, lado ímpar da Nove de Julho.

São estes relatos comparativos de tempos em tempos de um mesmo local que me fascinam. Como seria se os homens vivessem mais e pudessem acompanhar determinados locais durante os últimos duzentos anos? A rua da Consolação, por exemplo. Até onde me lembro neste momento, ela foi aberta em 1808 (posso estar enganado, mas creio que é isto).

Admitindo que um homem que tivesse uns 220-230 anos de idade hoje e conseguisse manter a lucidez, ele teria visto uma picada no meio da mata tornar-se uma rua mais larga para a passagem de um ou outro carro de bois ou de burros (essa rua, antiga estrada de Pinheiros ou de Sorocaba, existe desde tempos imemoriais como a trilha Tupiniquim, parte do "complexo viário" indígena do Peabiru) para depois ser prolongada até o topo do Caaguassu, junto à então futura avenida Paulista. Depois, no final do século XX, receberia seus primeiros trilhos para bondes a burros, substituídos no início do XX para trilhos mais robustos para os bonde elétricos.

Em meados dos anos 1960 seria duplicda e receberia um canteiro central. Enquanto isso, os bondes acabaram e os ônibus a invadiam cada vez mais, juntamente com automóveis e motocicletas. Se alguém pudesse ter acompanhado isto e contar histórias comparativas hoje para nós, imagine o que não seria!

É o que as fotografias tentam fazer. Porém, a fotografia mais antiga que já vi da rua da Consolação não é nem do início do século XX. É mais recente. O que posso contar sobre a rua é que eu a conheci bem mais estreita — largura equivalente a uma das pistas que tem hoje — com paralelepípedos e duas linhas de bonde, uma subindo e outra descendo, no centro da rua. Eu a vi tendo as casas de um dos lados sendo demolidas desde a Biblioteca Municipal até a avenida Paulista. Vi-a em obras de duplicação — outro dia vi fotografias destas obras e da avenida recém-aberta, em 1967/8.

Tenho, assim como muitas outras pessoas, diversas memórias de pontos de São Paulo. Só que o homem que não morreu — aquele, sim, morreu, mas não deveria — não existe e não pode contar duzentos anos de história nem ter fotografias de 200 anos, porque esta tecnologia nem existiu por todo esse tempo. Agora é fuçar as gavetas e impedir que memórias fotográficas sejam atiradas ao lixo por descaso ou qualquer outro motivo.

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