quinta-feira, 14 de novembro de 2013

A ÚLTIMA VIAGEM

O trem Santa Cruz, Rio-São Paulo, vindo do Rio e passando pela estação de São José dos Campos. Autor e data desconhecidas. Possivelmente anos 1980.

Este texto foi escrito em 9 de novembro de 2003, portanto dez anos atrás, por Roberto Dias Guimarães, 

Não me lembro por que estava em meu arquivo virtual, mas achei-o hoje e gostei dele. Pode ter sido enviado a mim pela pessoa que o escreveu. Deve ter sido. Mas realmente, perdão, não me lembro. Segue o que ele escreveu no provável e-mail que recebi:

"Sou carioca e cheguei aqui em S.Paulo em 1979, transferido na empresa onde trabalhava. Esta cidade é muito diferente do Rio de Janeiro, nos seus hábitos, costumes, tradições e personagens. Logo fiquei impressionado com a seriedade com que eram tratadas as coisas mais corriqueiras. Horários rígidos, os ônibus urbanos pareciam londrinos pela pontualidade com chegavam aos pontos de embarque, a organização das feiras-livres, com suas barracas muito bem arranjadas e alinhadas, teatros em que não se podia entrar trajando calças jeans.

O Jockey Club a exigir paletó e gravata para frequentar as suas dependências sociais e mais um sem número de evidências que faziam com que a vida aqui estivesse a mil anos-luz da que levava no Rio.

Nessa época, década de 1980, fiz inúmeras viagens de trem para lá e, por conta disso, registrei mais uma curiosidade. O trem - Santa Cruz - imponente e confortável partia da magnífica Estação da Luz, pontualmente às 23 h. Nem um minuto a mais ou a menos. 23 horas e ao soar do apito, o trem começava a evoluir compassada e maciamente.

Numa dessas viagens, por volta de uma hora da manhã, quando voltávamos do Carro-Restaurante com destino à nossa cabine, cruzamos com o Chefe do Trem, que era quem recepcionava os passageiros, mostrava as cabines, registrava os horários de jantar e café da manhã, etc... Era responsável por um ou dois vagões, no máximo. Era um negro, já de idade mais avançada, usando pesados óculos, com seu uniforme impecável: calça cinza, paletó branco e um quepe que lhe conferia um ar de comandante das barcaças do Mississipi. Muito sério e envolvido com o seu trabalho.

Depois de acomodar a minha família na cabine, senti vontade de fumar um cigarro e me dirigi até o fundo do vagão onde havia uma janela enorme e, assim, além de não incomodar ninguém, poderia desfrutar daquela brisa da noite que estava muito gostosa.

Nesse local, ficava um cubículo estreito onde o Chefe do Trem podia descansar durante a viagem. Passei por ele, cumprimentei-o mais uma vez e percebi que estava chorando. Enxugando os olhos e os óculos grossos. Perguntei se estava sentindo alguma coisa, se precisava de alguma ajuda, coisas assim. Ele, então, me respondeu que estava chorando porque sentia saudades. Indaguei de quem era a saudade tão doída que o fazia chorar. Para espanto meu, respondeu que já estava com saudades da estrada de ferro, da empresa e, especialmente, daquele trem. Ia se aposentar e aquela era a sua última viagem como Chefe do Trem. Havia trabalhado durante quarenta anos na RFFSA e, ao menos, os últimos vinte e dois naquela função de que muito se orgulhava.

Resolvi, então, "esticar" o assunto e passei a ouví-lo com real interesse pelas histórias que tinha para contar e que eram muitas. A cada trecho da ferrovia ele tinha um fato interessante a relatar, os passageiros ilustres que tinha conhecido, os que tinham medo de avião, as paradas forçadas por incidentes, a luz tênue dos vagões, amarelada, esmaecida,que tinha aniquilado praticamente a sua visão.

Em suma, não dormi naquela viagem. Ficamos conversando a madrugada inteira. Afinal, talvez fôsse eu o último passageiro a quem tinha o prazer de servir.

Chegamos ao Rio, não pontualmente como saímos, mas inteiros e ainda pude lhe desejar muito boa sorte na nova vida. Fiz um amigo e fiquei feliz pois ele me falou, com grande satisfação, que iria voltar no mesmo trem, à noite, mas como passageiro, pela primeira vez.

Seu nome era José e morava no Brás."

2 comentários:

  1. É de se emocionar, ler uma história tão linda, mas, na minha modesta opinião, só entende este sentimento as pessoas que realmente gostam de organização, decência, honestidade, virtudes, que estão cada vez mais escassas num país que está (na minha opinião se entranhando cada vez mais, no caos, na desordem, na corrupção, no egoísmo, no individualismo, na falta de educação, de caráter e ainda tem muita gente que acredita que estamos caminhando para os padrões de "PRIMEIRO MUNDO", infelizmente estamos seguindo na CONTRA MÃO do resto do planeta e eu sinceramente não consigo ver nenhuma perspectiva de melhora para o nosso futuro...infelizmente o povo brasileiro está cada vez mais perdido.

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  2. É uma bela história, concordo com o Luiz Nery, é de emocionar.

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