segunda-feira, 18 de abril de 2011

A MAD MARIA DE PALMEIRAS

Almoço na Exposição Nacional de 1908. O terceiro sentado da esquerda para a direita é Percival Farquhar. À direita, sentado, de barba e olhando para o fotógrafo, o Presidente Affonso Pena.
O texto abaixo foi escrito por mim em 2005 para o jornal A Tribuna de Santa Cruz das Palmeiras, SP, daí o título.

E a Rede Globo resolveu adaptar o romance Mad Maria para a televisão. Ele discorre sobre a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, mas, cuidado – é um romance. E, como tal, não conta a verdadeira história dessa estrada. Aliás, a Globo nunca afirmou isso. Não li o livro, portanto, não sei quais mais modificações o seriado colocou na sua adaptação. Mesmo assim, assistindo a alguns dos primeiros capítulos – não consigo assistir a todos, devido ao horário – não pude deixar de notar alguns erros históricos que não deveriam aparecer mesmo em um romance ou em sua adaptação.

O primeiro erro: o vilão da história, Percival Farquhar, fala que “precisa daquelas concessões das ferrovias no Paraná”. Mas a história se passa em 1911, de acordo com o anunciado no primeiro capítulo. Farquhar já tinha todas as concessões do Paraná desde meados de 1910. Todas. Mesmo em um romance, isto soa estranho.

O segundo erro é mais problemático: Farquhar era mesmo um vilão? Quem era ele, afinal? Em primeiro lugar, como já se pôde depreender, Percival existiu mesmo. Nasceu em 1864 e morreu em 1953, nos Estados Unidos. Era um empresário riquíssimo, filho de pai igualmente rico, mas de mãe quaker – como sabemos, os quakers são famílias religiosas protestantes que têm colônias, geralmente agrícolas, geralmente no nordeste dos Estados Unidos, e são extremamente conservadores – normalmente, nem se casam com quem não seja de sua crença. A mãe de Farquhar casou-se – mas ele com certeza teve a sua educação bastante conservadora. O biógrafo de Farquhar, Charles Gauld, entrevistou-o várias vezes antes de sua morte, mas seu livro, em inglês, com mais de 500 páginas, está esgotadíssimo. Charles afirma que Farquhar tinha muito de quaker, era uma pessoa com imenso tino comercial, mas que não costumava tratar mal os outros, bem como não era típico dele praticar atos de suborno. Lidando com governos, entretanto, como era o seu caso com a Brazil Railway Company e outros países da América Latina, ele não podia escapar disso – mas tinha a sua equipe pronta para fazê-lo quando fosse necessário. Por isso, foi muito estranho para mim, vê-lo tratar o seu principal sócio e dono da Light do Rio de Janeiro – Alexandre Mackenzie, cujo nome está há anos no prédio da Light de São Paulo no viaduto do Chá que hoje é um shopping center – como se fosse um empregado qualquer seu. Mackenzie, cujo primeiro nome nunca é citado no seriado, nunca se deixaria ser tratado dessa forma. Da mesma forma, Farquhar não conseguiria falar como falou com Rui Barbosa, no primeiro capítulo, ao tentar convencê-lo a processar Alberto Torres, sabendo que o único problema de Torres era não gostar dele, Farquhar. Torres existiu mesmo, e foi uma das primeiras pessoas a tratar o ruralismo no Brasil, tendo sido ele um dos grandes patriotas nacionalistas daquela época. Não foi por menos que meu avô, Sud Mennucci, que também lutou nessa área, teve-o como um de seus inspiradores.

Em suma: ninguém é vilão apenas por ser um empresário com dinheiro. Há autores que escreveram sobre seus investimentos que o tratam como um demônio. Percival investiu muito no Brasil – muito mesmo. Em seis anos, entre 1906 e 1912, ele e sues sócios, em sua maioria banqueiros belgas e franceses, teriam investido mais dinheiro no Brasil do que o Império durante os seus quase setenta anos de existência. Aliás, sabe-se que esses banqueiros eram muito mais danosos ao País do que Farquhar, que servia como uma espécie de pessoa que dava a cara para bater. Farquhar queria lucros e médio e longo prazo, enquanto os banqueiros queriam apenas o que conseguiam durante a construção das ferrovias, ou seja, ganhar por quilômetro. Faliu por causa da ameaça de guerra na Europa, que cortou os capitais especulativos no mundo, faliu porque era, apesar de tudo, uma pessoa não tão bem informada onde deveria ser – como por exemplo ter mais detalhes de onde ele passaria as ferrovias que estava construindo, como a própria Madeira-Mamoré e a E. F. São Paulo-Rio Grande, no Paraná e em Santa Catarina, faliu porque o preço da borracha despencou da noite para o dia, inviabilizando o porto de Belém, que era dele, e a ferrovia da novela, faliu porque a inabilidade política de seus sócios e funcionários de confiança causaram uma guerra civil no Sul do País, a tristemente lembrada Guerra do Contestado, cujos jagunços incendiaram sua serraria e estações da ferrovia, deixando-o sem poder operar por mais de seis meses.

Farquhar é muito criticado por ter aniquilado as florestas de pinheiros do Sul, sem que as pessoas se lembrem que a sua serraria, embora fosse a maior da América do Sul, não era a única – e que, depois que ele deixou a Brazil Railway, inúmeras serrarias que nada tinham a ver com ele fizeram o mesmo serviço em regiões diferentes daqueles Estados. Deixando a Brazil Railway, ele se meteu na Estrada de Ferro Vitória-Minas, tendo sido ele que conseguiu desviar o seu ponto de encontro em Minas, de uma cidade com pouco a oferecer, para uma que tinha muito minério de ferro – Itabira. Aliás, ele, três anos antes de morrer, fundou a atual Acesita. Foi execrado e prejudicado por inúmeros Presidentes da Republica, inclusive Getulio Vargas – e conseguiu que gente como Monteiro Lobato, que o combatia asperamente no início, passasse a ser um de seus admiradores. Enfim, uma pessoa controversa.

E por aqui, nas bandas de São Paulo, ele, que teve a concessão da Sorocabana por mais de dez anos, também se tornou dono de 38 por cento da Companhia Paulista e de 20 por cento da Mogiana. E foi por causa dele que essas duas empresas puseram fim a uma guerra comercial de mais de trinta anos por causa do famoso direito de zona. Como acionista “pesado” nas duas, conseguiu, com seu tino comercial, fazer um acordo entre as duas, acordo este que gerou as três junções de seus trilhos de forma a que elas compartilhassem em vez de se guerrearem. Um desses pontos foi definido como sendo Pontal, onde se juntariam os ramais de Pontal e de Sertãozinho, um de cada ferrovia. O outro foi Guatapará, onde se juntavam a linha principal da Paulista com o ramal de Monteiros, da Mogiana, na região de Ribeirão Preto, às margens do rio Mogi-Guaçu. O terceiro foi a estação de Baldeação, em Santa Cruz das Palmeiras, juntando o ramal de Santa Veridiana com a linha-tronco da Mogiana. Pois é, Baldeação existiu por causa de Percival Farquhar. E foi destruída por causa do descaso de nossos governantes brasileiros.

A história de Percival Farquhar, como disse certa vez um amigo meu, daria uma tese de doutorado. Nem o livro de Charles Gauld conseguiu responder todas as questões de um homem tão controvertido. Há muito mais a se descobrir sobre este americano que foi um dos maiores investidores no século 20 no Brasil. Como se vê, ele estava em todos os lugares e há muito mais histórias sobre ele do que os leitores possam imaginar – e mais do que eu mesmo, que estudei sobre ele por muito tempo, possa imaginar. É, ele influenciou até na vida da pequena Santa Cruz das Palmeiras.

3 comentários:

  1. Olá, Ralph!

    Assisti à reapresentação de "Mad Maria" no canal Viva e, à procura de mais informações, encontrei seu site. O texto é excelente -- agradável, informativo e bem escrito. E, talvez por isto, busquei outros trabalhos de sua autoria. Há muito o que ler, e muita se tornou minha vontade de o fazer! Pelo que vi, você é um interessante amálgama de químico-historiador-memorialista, com a redação fluente e convidativa de um jornalista. Muito bom. =)
    Parabéns pelo trabalho e boa sorte em tudo!

    Mariella Monteiro dos Santos
    Campinas - SP

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  2. Mari, obrigado, fiquei orgulhoso. Senti-me um Premio Nobel. Abraços

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  3. Ora, imagine. Vai que falte ao pessoal da Premiação conhecer você... Mas fico contente que também ficou.
    Abraço!

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