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sábado, 23 de janeiro de 2016

TREM SÃO PAULO A PORTO ALEGRE (QUANDO HAVIA)

Estação de Itararé.

O ano era 1969. Em termos de ferrovias brasileiras, especialmente trens de passageiros, bastante próximo ao "fim dos tempos".

O Guia Levi ainda conseguia manter vários horários de trens pelo Brasil, mas muitas linhas, especialmente ramais curtos e também alternativas de horários para trens ainda funcionando já tinham sido eliminadas.

Por exemplo, este foi o ano em que, no início de janeiro, acabaram os trens em três ramais da Companhia Paulista - ramal de Jaboticabal, ramal de Ibitinga e também o ramal de Olímpia (sendo que eles eram apenas restos de ramais maiores, erradicados dois anos antes). No Paraná, o ramal de Barra Bonita e Rio do Peixe iria também "para o saco" até o final do ano,

Havia ainda ligação ferroviária de São Paulo com Curitiba, Uruguaiana, Santana de Livramento e Porto Alegre. Porém, era apenas um horário diário. A outra hipótese era usar trens mistos - mas que também eram escassos e, ainda por cima, mais demorados.

De acordo com o lendário Guia Levi, este de março de 1969, o único trem de passageiros - não o misto - fazia naquela época o seguinte horário:

O trem partia da estação Julio Prestes, em São Paulo, às 22:30 e chegava em Iperó às 1:10 da madrugada. 2 horas e 40 minutos de percurso, parando apenas em três estações intermediárias: São Roque, Mairinque e Sorocaba. Havia mais dez trens da Sorocabana que faziam o mesmo trajeto, por dia - e o último diário era o único que dava correspondência com o que, em Itararé, dava correspondência com o trem da Rede de Viação Paraná-Santa Catarina (RVPSC) que seguia para o sul.
Estação de Ponta Grossa.

De Iperó (onde o trem permanecia por treze minutos) a Itararé, eram mais seis horas e trinta e cinco minutos em 266 quilômetros. O trem partia às 1:23 e chegava em Itararé âs 7:58. No percurso, o trem parava em somente nove estações intermediárias: Tatuí, Itapetininga (por quinze minutos, para troca de locomotiva elétrica para diesel), Angatuba, Engenheiro Hermillo, Buri, Itapeva, Itanguá, Engenheiro Maia e Ibiti. De São Paulo até aqui, os passageiros mantinham seus carros, sem baldeação - apenas troca de locomotivas em Iperó e Itapetininga.

Em Itararé, a espera era de 32 minutos. Não acho que havia baldeação, somente novamente troca de locomotivas (divisão de comboio). Às 8:30 da manhã ele partia para Ponta Grossa. Os carros da composição se dirigiam também a Curitiba. Na RVPSC, havia as paradas passavam a ser realizadas em praticamente todas as estações. Eram vinte e três no percurso - Coronel Isaltino, Sengés, Tucunduva, Rio do Bugre, Fábio Rego, Samambaia (a sorte era que, após 1964, uma parte deste tortuosíssimo percurso já havia sido retificada), Jaguariaíva (onde parava por trinta e quatro minutos, para transbordo de passageiros para o ramal do Paranapanema e para refeição - a estação possuía restaurante), depois Cilada, Diamante, Presidente Castilhos, Joaquim Murtinho, Pedreira, Espalha-Brazas, Piraí do Sul, Tijuco Preto, Caxambu, Iapó, Castro, Tronco, Carambeí, Boqueirão, Pitangui e Rio Verde. A maioria das paradas desde Itararé até aqui era de lugarejos, parte deles perdida no mato.

O trem chegava a Ponta Grossa às 15:20, depois de 227 quilômetros e seis horas e cinquenta minutos de viagem. Ali novamente o comboio se dividia. Parte ia para Curitiba, parte seguia para o sul. A parada era de vinte minutos. Havia restaurante na imponente estação da cidade, hoje desativada, desde 1983. A esta altura, já estaríamos viajando há 16 horas e cinquenta minutos.
Estação de Porto União da Vitoria.

A viagem recomeçava às 15:40. O trem para Curitiba esperava mais: saía às 16:00. Mas o nosso ia para o sul, saía antes e percorria por dez horas os 245 quilômetros de viagem até União da Vitória, na divisa do Paraná com Santa Catarina. Passava e parava em vinte e uma estações: Rio Tibagi, Roxo Roiz, Guaragi, Valinhos, Rio das Almas, Teixeira Soares, Diamantina, Fernandes Pinheiro, Florestal, Irati (onde para por trinta e um minutos; a estação tinha um restaurante), Engenheiro Gutierrez, Rebouças, Rio Azul, Minduí, Mallet, Dorizon, Paulo Frontin e Vargem Grande e Paula Freitas.

Em União da Vitória, uma parada de quarenta minutos; A estação estava (rigorosamente) metade no Paraná (na cidade de União da Vitória) e metade em Santa Catarina (metade na cidade de Porto União). Foi construída em 1942, numa cidade que já havia sido dividida em 1917 pela linha do trem.

Todo mundo sobe no trem novamente - se é que muita gente descia; era alta madrugada e a estação não tinha restaurante. O trem partia à 1:40 e tinha de cruzar agora todo o Estado de Santa Catarina até chegar ao rio Uruguai, onde, do outro lado do rio e já no Rio Grande do Sul, encontrava a estação de Marcelino Ramos.

Para chegar ao destino, o trem sobe quase 600 metros em 60 quilômetros para chegar ao ponto mais alto da linha, a estação de Mattos Costa e, daí, descer todo o vale do rio do Peixe, acompanhando o rio em todas as suas curvas até alcançar o rio Uruguai. A composição parava em todas as estações intermediárias - Eugenio de Mello, Achilles Stenghel, Nova Galícia, Cerro Pelado, Maquinista Molina, Matos Costa, General Dutra, Calmon, Anhanguera, Presidente Penna, Adolfo Konder, Caçador, Leite Ribeiro, Tiburcio Cavalcanti,Rio das Almas, Ipomeia, Gramado, Videira, Pinheiro Preto, Tangará, Engenheiro Gois, Ibicaré, Luzerna, Herval D'Oeste, Itororó, Barra Fria, Leão, Capinzal, Avaí, Barra do Pinheiro, Piratuba, Uruguai e Volta Grande.
Estação de Marcelino Ramos.

Treze horas e vinte minutos e 391 quilômetros depois, às 15:00, cruzamos o rio Uruguai e chegamos a Marcelino Ramos. Nota: este local é uma das mais belas paisagens do Brasil. Já estávamos com 41 horas de viagem,

O trem partia novamente quarenta e cinco minutos depois de chegar. Havia restaurante na estação à beira do Uruguai. Agora a ferrovia era outra: a Viação Férrea do Rio Grande do Sul. Depois de rodar acompanhando este rio por um trecho, ele entrava pelo Rio Grande do Sul adentro, para buscar o novo destino: a cidade de Santa Maria, a 14 horas e quinze minutos e 515 quilômetros de trilhos. Ele chegaria à cidade às seis da manhã do dia seguinte, depois de parar em dezoito estações: Viadutos, Gaurama, Erechim, Capo-Erê, Erebango, Getúlio Vargas, Sertão, Coxilha, Passo Fundo (onde parava por vinte minutos - havia restaurante), Carazinho, Pinheiro Marcado, Santa Barbara do Sul, Belisario, Lagoão, Cruz Alta (mais doze minutos de parada), Tupanciretá, Julio de Castilhos e Pinhal. Completávamos 55 horas e quinze minutos de trem.
Estação de Santa Maria.

Dali, seguiríamos para Porto Alegre. As outras opções eram Uruguaiana, que nos levaria a Buenos Aires, e Santana de Livramento, pela qual poderíamos chegar a Montevideo - tudo sobre trilhos. 334 quilômetros e Vamos ficar com Porto Alegre. O trem partia às sete horas: uma hora de espera. Vinte e duas paradas em: Camobi, Arroio do Só, Restinga Seca, Estiva, Jacuí, Ferreira, Cachoeira do Sul (parada de cinco minutos), Bexiga, Lima Brandão, Pederneiras, Ipê, Rio Pardo (aqui, parada de 12 minutos), Ramiz Galvão, Professor Parreira, Anibal Pfeiffer, Argemiro Dornelles, Barreto, General Neto, Fanfa, General Luz, Vasconcellos Jardins e Augusto Pestana. Enfim, chegamos, às 16:00, depois de uma viagem de nove horas, No total, 64 horas e quinze minutos seguidas desde São Paulo - dois dias e meio dentro de um trem,

Mas nós podíamos fazer se quiséssemos. Tínhamos essa opção. Se fosse possível utilizat as linhas existentes hoje, a viagem seria mais curta. Saindo de São Paulo, seguiríamos pelo mesmo trajeto até Ponta Grossa, onde, dal, seguiríamos por linhas mais recentes, via Rio Negro, Lages, Vacaria e Porto Alegre. Mas  podemos perder as esperanças. Isto, infelizmente, não acontecerá. A última vez que foi possível se fazer São Paulo a Porto Alegre de trem foi em 1976.


segunda-feira, 29 de junho de 2015

DE SÃO PAULO A PORTO ALEGRE DE TREM - EM 1935



 Trem de passageiros em Uruguai, SC, a poucos quilômetros de Marcelino Ramos, anos 1950 (Acervo Joeli Laba).
Depois da “reorganização” da Brazil Railway em 1918/1920, as ferrovias entre São Paulo e Porto Alegre passaram a ter administrações independentes e proprietários diferentes. O artigo abaixo, publicado em diversos jornais do Brasil com o nome de “O Senso da Velocidade” em outubro de 1935 e escrito por Sud Mennucci, meu avô, que viajou por essa linha nessa época para atender à Exposição Comemorativa dos 100 anos da Guerra dos Farrapos, em Porto Alegre, mostra uma crítica severa ao sistema que nesse momento era gerido por três ferrovias diferentes – a Sorocabana, a RVPSC e a VFRGS. Basta ler um detalhe do texto sobre a viagem de automóvel de Sud de Florianópolis a São Paulo, passando por Curitiba, dois anos antes (1933):

“Uma vez em Curitiba, esperava-me o meu Fordinho, que viera de São Paulo no mesmo dia da minha chegada. Estava resolvido que iríamos a São Paulo de auto, para encurtar a viagem”.

Ou seja, em 1933, já era mais rápido ir de Curitiba para São Paulo pelas péssimas estradas de rodagem de então, do que pelo trem. Além do mais, eram comuns as viagens interrompidas devido a enormes pinheiros que caíam sobre a linha na hora da derrubada pelas madeireiras, sempre próximas à linha. A retirada podia demorar horas. Na verdade, a duração da viagem tanto criticada pelo autor jamais foi reduzida substancialmente, pois as paradas continuaram sendo muitas e a linha, quando teve uma alternativa de trajeto mais de 30 anos mais tarde, jamais transportou passageiros – o Tronco Sul de 1969.

Abaixo, o texto de Sud em 1935.

“Civilização e velocidade são hoje sinônimos. Desde Marinetti, no seu célebre manifesto de 1909, ninguém mais põe em dúvida, em nossos dias, que a característica fundamental da civilização é o senso da velocidade das massas. E pode dizer-se, sem intuito de fazer paradoxo, que a civilização de um povo é diretamente proporcional ao seu sentido de velocidade nas relações humanas. Diz-se que esse conceito partiu da verificação inglesa de que “tempo é dinheiro”.

(...) Um exame, mesmo superficial, do Brasil, quanto à sua aquisição deste sentido moderno, revela-nos que andamos com o nosso relógio muito atrasado. A não ser São Paulo e o Rio de Janeiro, em que a preocupação da rapidez já se insinuou até entre as mais baixas camadas sociais, tudo o mais está fora da regra universal. Em São Paulo esse aspecto constata-se na luta entre a estrada de ferro e a de rodagem. (...) Ainda agora, a mais poderosa empresa ferroviária do Estado, a mais bem organizada do País e talvez da América do Sul, a Companhia Paulista, está modificando toda a superestrutura de sua via permanente entre Jundiaí e Rincão (286 km de linha eletrificada) para fazer com que os seus trens corram, em média, 100 km horários, de maneira que dentro em breve se possa ir em pouco mais de três horas de São Paulo a Araraquara.

(...) E no resto do Brasil? (...) Tornou-se patente o fenômeno ainda recentemente, com a inauguração da Exposição Farroupilha. Muita gente de São Paulo desejou ir à terra gaúcha tomar parte nos festejos comemorativos da maior guerra interna que o Brasil teve e muita gente desistiu diante do tamanho da viagem ferroviária. Alegar-se-á que restavam outros dois recursos: o mar e o aeroplano. Contudo, as passagens estavam tomadas e havia a maior dificuldade em conseguir lugar. O avião ainda é artigo de luxo em nosso País, que custa quatro vezes mais que o transporte por estrada de ferro. A solução mais fácil e mais cômoda economicamente era, portanto, a do trem de ferro. Entretanto, a viagem assustou inúmera gente.

(...) Porque é impossível imaginar, entre São Paulo e Porto Alegre, uma viagem mais lenta, mais descansada, mais carro-de-boi... Examinemo-la sem pressa. De São Paulo a Porto Alegre há 2.216 km de linha férrea, compreendendo três estradas diferentes: a Sorocabana; a São Paulo-Rio Grande e a Viação Gaúcha. O primeiro trecho é de 409 km; o segundo, de 884 km; o terceiro de 923 km. Tempo de trajeto normal, 88 horas. Quer dizer, sai um cidadão de sua casa às 16 horas de um sábado, na Paulicéia, para chegar a Porto Alegre às 8 da manhã de quarta-feira. Isso dá uma média de 25 km por hora (...) As máquinas são boas e podem fazer, sem esforço, 35 km horários. E isso reduziria a viagem a cerca de 64 horas, ganhando, portanto, 14.

Quais são esses motivos? O primeiro e mais importante é o vício das paradas dos trens. Os comboios, apesar de se destinarem a uma tão longa viagem, não conduzem, inexplicavelmente, o carro-restaurante. A não ser de São Paulo a Itapetininga e num trecho do Rio Grande do Sul, os trens viajam sem esse já hoje indispensável elemento de conforto. Resultado: de cinco em cinco horas, o trem para meia hora para alimentar os passageiros. Depois, em Marcelino Ramos, nas divisas do Rio Grande, demora-se mais de seis horas; em Passo Fundo, mais de uma hora; em Santa Maria, mais de duas. Tudo somado, há uma perda de treze horas de trajeto. (...) Subtraiam-se essas treze horas do total de oitenta e oito horas e teremos que, sem a menor dificuldade, sem a menor reforma, bastando apenas anexar um carro-restaurante aos trens e eliminar as paradas, já se poderia fazer a viagem em 75 horas.

Mas para isso, seria mister que existisse nos homens, tanto nos da direção das estradas de ferro, como na massa da população que viaja, “o sentido da velocidade”. E é esse que falta. Setenta e cinco horas de viagem para 2.216 km de distância, contudo, não elevam a média horária nem mesmo a 30 km. E como no trecho paulista (São Paulo-Itararé) a média é de 35 km, ficaria para o resto uma velocidade de 28 km por hora. (...) De Itararé em diante, até Santa Maria da Boca do Monte, o trem para em todas as estações, por insignificantes que sejam. (...)  E em trens de grandes percursos, como esse, as paradas precisam ser reduzidas ao mínimo, só para as grandes cidades, a fim de que a locomotiva tenha espaço para desenvolver toda a sua potência. (...) Suprimidas as paradas dispensáveis, a fim de elevar a velocidade média horária a 35 km, o trajeto poderia ser realizado em 63 ou 64 horas, ganhando-se, portanto, um dia de viagem sobre o atual, e sem fazer modificação nenhuma de caráter extraordinário, que implicasse em gastos ou em ônus para as estradas de ferro.

Porque, se as estradas quisessem enveredar pelo caminho das obras e gastar de verdade, no intuito de reduzir a distância e o tempo, pode assegurar-se que a viagem São Paulo-Porto Alegre, mesmo na estrada de ferro da bitola de um metro, é passível de realizar-se em dois dias. (...) É um verdadeiro absurdo que entre São Paulo e Porto Alegre se haja estendido uma linha férrea com 2.200 quilômetros de comprimento, quando esse mesmo traçado, tocando nos mesmos pontos terminais dos Estados em que toca hoje (São Paulo Itararé Porto União Marcelino Ramos Porto Alegre) de pouco ultrapassará 1000 quilômetros. A linha atual é, portanto, mais do dobro da linha reta.

(...) Para dar uma idéia do que foi o traçado da São Paulo – Rio Grande basta citar alguns exemplos frisantes: de Itararé a Jaguariaíva, a distância, em linha reta, é de 40 quilômetros. Admitindo-se os 20 por cento adicionais que as estradas de ferro precisam para o seu desenvolvimento, teríamos, no máximo, um trecho de 50 quilômetros. Pois a ligação tem apenas 98, isto é, o dobro! Entre Jaguariaíva e Castro, há, em reta, pouco mais de 50 quilômetros. Com os 20 por cento adicionais, teríamos, no máximo, 65. Pois o traçado achou jeito de chegar a quase 100.

Entre Porto União e Marcelino Ramos, isto é, entre o rio Iguaçu e o rio Uruguai, a distância é de 160 quilômetros, que dariam um máximo de 200 de extensão férrea. Pois há nada menos de 368 quilômetros. (...) A linha férrea segue religiosamente as cotas de nível do terreno e serpenteia ao sabor das elevações e das colinas, procurando sempre o caminho de menor resistência para evitar a construção dos viadutos, cortes e aterros e outras obras de arte. Conta-se que o Presidente Penna, ao inaugurar o trecho Itararé-Jaguariaíva, viajava na frente da locomotiva. Ao verificar uma série de curvas seguidas e muito próximas umas das outras, em terreno relativamente chato, indagou se havia alguma outra estrada de ferro em construção, tal a direção que a linha tomava em certos pontos, completamente contrária àquela que a locomotiva estava fazendo. Responderam-lhe que não e que o trem iria passar sobre os trilhos que ele estava vendo. O presidente sorriu. – Eu sou apenas um bacharel – acrescentou – mas parece-me que essas curvas são perfeitamente dispensáveis aqui, onde não se vê a necessidade de ganhar elevação. Enfim... os técnicos são os senhores...

(...) No caso presente, do encurtamento da linha São Paulo-Porto Alegre, a curva maior, contudo, é a que fica além de Marcelino Ramos. Desta estação à Capital gaúcha, adotou-se como trajeto o caminho mais estranho que se podia. (...) O caminho mais curto para ir a Porto Alegre seria o de Passo Fundo a Montenegro, mas a estrada preferiu o outro e deu a volta (...) E essa volta tem um comprimento total de 923 quilômetros, quando o outro caminho poderia ter, com toda condescendência, no máximo 500 quilômetros, como vamos demonstrar. (...) Se no trecho Itararé-Marcelino Ramos que, como vimos, tem 884 quilômetros, a supressão das curvas não fosse além dos 250 quilômetros, embora a distância em reta não chegue a 450 quilômetros, concluiríamos que o comprimento da linha São Paulo-Porto Alegre não iria além do seguinte: São Paulo-Itararé, 409; Itararé-Marcelino Ramos, 634; Marcelino Ramos-Porto Alegre, 504; total, 1.547. Com a velocidade horária de 35 quilômetros pode fazer-se o trajeto em 48 horas folgadas.

(...) O Brasil, desgraçadamente, é ainda um país cru.”

quinta-feira, 8 de março de 2012

FERROVIAS EM BAIXA


Na minha infância não houve ferrovias. Ou quase não houve. Que eu me lembre, houve apenas uma viagem de trem de minha parte, numa data que não sei precisar: fui e voltei a Santos numa viagem de ida e volta feita em um dia só, provavelmente na primeira metade dos anos 1960.

Nesse tempo, as ferrovias já estavam em baixa: eu sabia que elas existiam, mas não as via. Em São Paulo, capital, eu as cruzava nos pontos que ela existe até hoje: já da Cantareira, não tenho lembrança alguma, talvez em realidade jamais a tenha visto, já que eu não morava por aquelas bandas e raramente ia para a zona norte com meus pais.

Tomar trem de subúrbio, nem pensar; os trens que eu mais via eram os da Sorocabana na Marginal do rio Pinheiros, e isso, somente a partir de 1969, ano em que passei a dirigir automóveis. Aliás, tirei minha carta em março desse ano, quando tinha dezessete anos e quatro meses; foi durante um curto período de alguns meses em que tirá-la com essa idade foi permitido.

De bondes eu me lembro, andei muito neles em São Paulo e em Santos, mas ninguém que seja ferreofanatico - eu não era nessa época - considera bonde como sendo estrada de ferro. Passei uma semana em São Carlos em 1959, mas nem sabia que lá existiam trens, nem eu nem meu pai nos preocupamos com isso.

Nas viagens com meus pais, muitas feitas dentro de um Studebaker 1951 e numa Kombi 1961 pelo Brasil afora - fomos de carro para o Recife, para Porto Alegre, Belo Horizonte, Piracicaba, São José dos Campos -, certamente cruzamos muitas ferrovias, várias delas que hoje nem existem mais, em passagens de nível por todos esses lugares, mas eu me lembro disso? De nada! Nem meus pais comentavam na época.

O sinal era claro: as ferrovias já estavam em baixa no Brasil. Em 1966, estive em Ibitinga, próxima a Araraquara, por duas semanas, na casa de um amigo. Fui de ônibus, que tomei na estação rodoviária velha, em frente à estação Julio Prestes. Em tempos mais antigos, eu iria de trem: pegaria a Paulista na Luz, seguiria para Sào Carlos e ali pegaria o trem para Ibitinga, aquele, da velha Douradense. Isso ainda poderia ser feito naquele final de 1966; meus pais, nem eu, nem cogitamos isso. Eles me deixaram na rodoviária e eu embarquei, somente trocando de ônibus em Araraquara, onde tomei a Viação Cruz.

Nos anos seguintes, primeira metade dos anos 1970, passei a frequentar a casa de meus tios em Itanhaém. Ela dava fundos para a linha Santos a Juquiá. Eu ia até os trilhos frequentemente, algumas vezes via um trem passar, pegava erva cidreira para fazer chá, mas tomar o trem? Nunca tomei! Ele acabou em fins de 1997 e eu perdi o bonde da história.

Até hoje, a ferrovia segue em baixa, pelo menos no que tange ao transporte de passageiros. As linhas de subúrbio se tornaram metrôs e trens metropolitanos - são muito bons, mas não são trens de passageiros clássicos, que flutuavam pelo planalto no meio de pradarias e florestas, parando a cada vinte minutos ou mais numa estação de fazenda. Esses acabaram. E nós ficamos olhando, aceitando tudo. Aliás, o termo "em baixa" não se aplica, a expressão real é "foram-se".

domingo, 11 de dezembro de 2011

VIAJANDO NUMA KOMBI

Recife - anos 1960 (cartão postal)

Minhas recordações de criança de outras cidades começam em Joinville, SC. Eu era muito pequeno quando meus pais me levaram lá. Devia ter uns 4-5 anos de idade no máximo. O ano? 1955 ou 1956. Lembro-me da sorveteria da minha tia-avó, Tekla.

Depois, de minha ida aos Estados Unidos por cerca de um ano. Restam muitas recordações, um pouco embaralhadas. Quando voltamos, em fins de 1957, passamos a ir para nosso apartamento no Embaré, em Santos, a um quarteirão da igreja do bairro, em frente à praia. Santos já tinha uma parede de edifícios. Era aquele prédio que tinha um monte de apartamentos por andar (acho que mais de dez) e o hall dava para um vão central, ou seja, metade do hall era aberto. O prédio ainda existe. Íamos à praia, passeávamos a pé, de bonde (ao centro, Ilha Porchat, ao Gonzaga, a São Vicente, biquinha, Guarujá (via balsa), aquário). Adorava andar de bonde naquele trecho em que as linhas estavam no canteiro central, entre o aquário e a Ponta da Praia.

Depois, janeiro de 1959, São Carlos. Ficamos na Estância Suiça, local na entrada da cidade (de então) que, parece, nem existe mais. Nos anos seguintes: Santo Antonio do Pinhal, Campos do Jordão, Piracicaba, Campinas. A partir de 1963, passamos a sair do Estado.

Em janeiro de 1963, São José dos Campos, um mês hospedados dentro do CTA. São José dos Campos ainda começava na Dutra, e nem tão junto à estrada assim... o CTA era quase um deserto, o prédio do alojamento era novo e ficava no meio de um enorme descampado...

Em julho, fomos a Porto Alegre na Kombi de papai, via BR-2 (atual BR-116) até Curitiba, dali a Ponta Grossa, voltando depois para Curitiba, seguindo por Mafra e Rio Negro, Lajes, Vacaria, Caxias, até Porto Alegre. Voltamos por Torres, Araranguá, Blumenau, Joinville e Curitiba, daí São Paulo de novo.

Em 1965, a maior viagem: ida e volta a Pernambuco, esticando um dia a João Pessoa, seguindo via Dutra, Volta Redonda, Além Paraíba, Leopoldina, Governador Valadares, Teófilo Ottoni, Vitória da Conquista, Jequié, Feira de Santana, Salvador, Aracaju, atravessando o São Francisco via balsa em Penedo, Maceió, Recife. Na volta, viemos via Paulo Afonso, Alagoinhas (caminho maluco para a época - tudo de terra!), Salvador de novo, dali pelo mesmo caminho da ida, até São Paulo.

Em julho de 1965, Belo Horizonte, indo e vindo pela Fernão Dias. Duas semanas na capital mineira... Em 1966, uma semana em Curitiba.

Todas essas viagens foram feitas com meus pais, e, de 1961 para frente, sempre na Kombi que ele tinha, com cortininha e tudo, Muito bom, excelentes lembranças. Meio vagas já, mas muito agradáveis. Meu pai topava tudo, inclusive andar pelo nordeste em 1963 em estradas praticamente todas de terra ou com asfalto vagabundíssimo e cheio de buracos.

Pequenos pedaços de lembranças de um Brasil de cinquenta anos atrás.

terça-feira, 19 de abril de 2011

DESVIO MORTO


A fotografia acima, tomada em 1997 por André Luiz de Lima em Itapeva, é interessante: o ramal ferroviário que parte para a direita era, na verdade, parte integrante da linha que vem da estação antiga de Itapeva e vem de baixo da fotografia. A linha que segue em frente e passa por baixo do viaduto somente foi construída muito depois.

Pois então: o "ramal" era a linha que ligava São Paulo ao sul do país. Passava por Itararé, Jaguariaíva e chegava a Ponta Grossa. Daí seguia para Porto Alegre, Uruguai e Argentina.

A linha que foi entregue em 1969 e segue em frente passa pela estação de Nova Itapeva, cujo pátio está logo depois do viaduto. É uma estação ativa hoje, para a ALL. Fui muito bem recebido pelo pessoal que trabalhava lá no ano de 2007, quando a visitei. Até mandaram o trem que estava partindo da estação no sentido de Tatuí esperar, para que eu fosse até ele fotografar...

Porém, já nessa época o ramal havia sido arrancado. Até Jaguariaíva, tudo foi erradicado. As estações de Itararé, Engenheiro Maia e outras, inclusive Sengés, no Paraná, perderam suas funções. Quase todas as estações desse intervalo foram demolidas, inclusive as duas últimas citadas.

Hoje, o trem que segue para o sul segue pela linha nova, por Pinhalzinho (na divisa SP-PR) e um trecho semi-deserto até chegar a Uvaranas, em Ponta Grossa. Trens de passageiros jamais passaram nessa linha. Só cargueiros mesmo.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

EM 1963 NA SERRA GAÚCHA

Estação de General Luz (Foto Helio Tavares, 2006)
A história ferroviária do Brasil é cheia de situações distintas que nem sempre são fáceis de se explicar. Principalmente se levarmos em conta que, nos últimos 60 anos, a esmagadora maioria delas se tornou propriedade do governo e este, como é sabido, é sabidamente mau administrador de seus negócios, por diversos e variados motivos.

Um dos casos que estava analisando foi a modificação do traçado da linha que ligava Porto Alegre à região norte/nordeste da capital, nos anos 1960. Na época, os trens de passageiros metropolitanos e de longa distância ainda operavam em todas as linhas que estavam operacionais no país e, portanto, também nas do Rio Grande do Sul. Ainda era a VFRGS - Viação Férrea do Rio Grande do Sul - a responsável pela totalidade das operações no estado, tendo passado a fazer parte da RFFSA - Rede Ferroviária Federal S. A. - no ano de 1960 (ela foi uma das pouquíssimas empresas que se juntaram à Rede depois da criação desta em 1957).

Em 1963, o Tronco Principal Sul - como é chamada a ferrovia que une a cidade de Mafra, em Santa Catarina, à estação gaúcha de General Luz, na linha Porto Alegre-Uruguaiana e situada no município de Triunfo, na Grande Porto Alegre - estava ainda em construção. O trecho catarinense entre Mafra e Lajes estava praticamente pronto. A linha de Lajes a Montenegro ainda estava no início de obras e o trecho final de Montenegro a General Luz estava sendo inaugurado e aberto ao tráfego.

A ferrovia toda (Mafra-General Luz) seria entregue pronta em março de 1969, mas os trechos que ficavam prontos iam sendo postos em atividade. Acontece que em 1963 (a data é incerta, até hoje não consegui saber a data exata), os trens de passageiros, praticamente trens metropolitanos, deixaram de passar por onde passavam antes, no trecho entre Rio dos Sinos e a estação velha de Montenegro: eles foram desviados para a linha nova General Luz-Montenegro e daí voltavam a tomar a ferrovia para Carlos Barbosa e Caxias do Sul. A ferrovia existente foi retirada e quatro estações (Manoel Viana, Portão, Azevedo e Pareci) situadas em quatro municípios (respectivamente, São Leopoldo, Portão, Capela de Santana e Montenegro) foram eliminadas do mapa ferroviário gaúcho.

Com exceção da estação de Pareci, eram locais de baixa população; todas, no entanto, perderam provavelmente a única condução que tinham e não devem ter recebido nenhuma compensação por isso. O que afirmo aqui se baseia somente no fato de que, há 50 anos atrás, esse tipo de atitude era comum. As estradas não deveriam ainda ser pavimentadas e ônibus deveria ser transporte raro por ali. E transporte pelo menos do vilarejo para a estação mais próxima na linha nova, nem pensar. Se por acaso estas afirmações não forem verdadeiras, que alguém me as desminta.

Depois de algum tempo, a nova linha que chegava a Montenegro uniu-se ao último trecho que foi entregue e que seguia para Paverama, Roca Salles, Vacaria e finalmente Lajes. Os trens para Caxias continuaram seguindo da forma de antes até serem desativados no final dos anos 1970. A ligação com essa linha que vinha de General Luz perdeu a serventia.

A velha linha que fazia o trecho de Porto Alegre a Caxias foi seccionada, portanto. Passou a haver um trem de passageiros que fazia o trecho PA-Rio dos Sinos por ela (durou até o final dos anos 1970) e outro que entrava pouco depois do Aeroporto (num local chamado Standard) para a PA-Uruguaiana e seguia até General Luz, entrando pelo Tronco Sul até Montenegro e voltando para a linha até Caxias - durou também até o final dos anos 1970.

Eu me pergunto o por quê de tudo isto. Será que o trecho desativado em 1963 era tão ruim ou problemático assim a ponto de não merecer uma reforma, para não causar tantos problemas a quem deixou de ter o trem nas quatro estações? Por que seccionar uma linha que funcionava e que, bem ou mal, ainda estava ativa? Em tempo: o tal trecho tinha apenas 50 quilômetros.

Para mim, parece decisão irracional, ou tomada no sentido de forçar o abandono dos trens por parte dos usuários, numa época em que as ferrovias já estavam atiradas em um longo período de vacas magras.

domingo, 31 de janeiro de 2010

QUE COMAM BRIOCHES!

Maria Antonieta de Áustria, rainha da França (1774-1792). Foto Wikipedia

Há governantes que não percebem a real necessidade do povo que governam. A rainha de França, Maria Antonieta, esposa de Luiz XVI, respondeu aos pedidos do povo por pão com a frase célebre: “Eles não têm pão? Que comam brioches”. Por essa e por mais outras, além de não perceber a gravidade da situação que a cercava, perdeu — literalmente — a cabeça.

Nem isso fez os governantes dos quase 250 anos que se passaram aprender. É verdade que eles hoje não perdem mais as cabeças, mas algumas vezes — infelizmente, somente algumas vezes — perdem o governo. Hoje em dia, parece que pessoas como o Sr. Kassab são cegas. Há outros exemplos, muitos deles. Não vou ficar numerando, mas cito um fato lido no jornal O Estado de S. Paulo de hoje que fala sobre transporte urbano sobre trilhos.

Diversas cidades que falavam em implantar Veículos Leves sobre Trilhos ou “Metrôs Leves” — é tudo basicamente a mesma coisa — agora dizem que, já que não foram escolhidas para sediar a Copa do Mundo de 2014, vão deixar esses planos para trás e construir corredores de ônibus. Campo Grande, Natal, Cuiabá e Porto Alegre são as cidades citadas. Lá, o povo vai comer brioches — e talvez, pois sempre é possível que não construam é coisa alguma.

Para não dizerem que eu só penso em trilhos, vamos acrescentar o que a reportagem escreve:

"Em média, o custo para adotar os VLTs é o dobro do de corredores de ônibus do tipo BRT (Bus Rapid Transit), usado em Curitiba e Bogotá. Um projeto para trens leves exige pelo menos R$ 37 milhões por quilômetro, enquanto um BRT sai por R$ 18,8 milhões/km. Para o consultor Peter Alouche, os investimentos não devem ser analisados somente pela quantia inicial. 'Os custos podem ser maiores a princípio, mas a longo prazo isso se reverte. Uma frota de ônibus precisa ser trocada a cada cinco anos e um trem dura 40 anos'. Alouche também afirma que o VLT vem acompanhado de uma revitalização urbanística da região. 'O fato de ser um projeto mais caro significa que vai haver uma preocupação maior com a área, que será recuperada urbanisticamente. O Transmilênio (elogiado corredor de ônibus de Bogotá) funciona bem como meio de transporte, mas dividiu a cidade em duas'.

Os defensores de corredores no estilo BRT argumentam que, a um custo de operação menor, conseguem transportar praticamente a mesma quantidade de pessoas dos VLTs. Nos ônibus, são entre 10 mil e 20 mil passageiros por hora e sentido, enquanto o modelo sobre trilhos tem capacidade entre 15 mil e 35 mil. ‘Só é preciso elaborar bem os projetos. Mesmo um BRT pode dar errado se for feito no tapa, para ficar pronto a tempo da Copa’, completa Balassiano, que ressalta que os corredores precisam ser um ‘sistema à parte’, não enfrentando cruzamentos e outros tipos de interferência. O investimento, porém, parece ser o diferencial para a escolha entre os dois modelos. A prefeitura de Campo Grande, por exemplo, ficou de fora da Copa e então desistiu de um projeto de 12 quilômetros de VLT. No lugar, o município vai trabalhar na criação de um sistema com 32 quilômetros de corredores, ao custo de R$ 150 milhões. ‘Nossa demanda é baixa para a utilização de um VLT e, por isso, vamos trabalhar em um sistema de terminais e corredores’, diz o diretor da Agência Municipal de Transportes da cidade, Rudel Trindade”.

Tudo é explicação e desculpas — como se não fosse necessário para qualquer cidade desse porte olhar para o crescimento futuro, com Copa ou sem Copa. Enfim, notamos a cegueira habitual. Não vão perder a cabeça, mas vão ser lembrados no futuro pelos seus sucessores da forma “isso é culpa das administrações anteriores”, como costuma dizer a maioria dos governantes neste País de Deus.

O povo? Ora, o povo... que continue respirando a fumaceira dos ônibus desregulados e do enorme ruído decorrente de seu tráfego, em vez do silêncio e limpeza dos bondes (ops, desculpe, VLTs).