domingo, 29 de março de 2009

PEDAÇOS DO PASSADO

Acima: trilhos na rua Veneza - autor desconhecido, 2009
Acima: bonde de Santo Amaro, local desconhecido, anos 1950, acervo Eliezer Magliano

A cidade de São Paulo, chamado de palimpsesto pelo arquiteto Benedito Lima de Toledo, foi
construída e reconstruída pelo menos duas vezes nos últimos cento e cinquenta anos. Não, isto não aconteceu porque ela sofreu ataques aéreos (e sofreu, em 1924!), mas sim porque o crescimento extremamente rápido de sua população assim o exigiu. Em 1850, não tinha mais do que 20 mil habitantes. Em 1950, cem anos depois, tornou-se a maior cidade brasileira, ultrapassando a então Capital Federal, o Rio de Janeiro, passando de 2 milhões de habitantes. Hoje, o município atinge cerca de 11 milhões de pessoas.

Com tudo isto, é como se um gigantesco trator tivesse apagado do mapa tudo o que tem mais de setenta anos, época em que a cidade já entrava na sua terceira versão. Esse trator não conseguiu isso, mas o trator anterior apagou praticamente tudo anterior aos anos 1850. Sobraram pouquíssimas coisas, que o trator, possivelmente por negligência de seu maquinista (quem dirige trator é um motorista, maquinista ou tratorista?), deixou escapar da degola: a casa da Marquesa de Santos, o obelisco do largo da Memória, uma ou outra casa bandeirista mais para fora da área central, uma ou outra igreja. Uma das menores peças que teria sobrado foi o marco da meia légua que até hoje repousaria escondido em algum canto da rua França Pinto, próximo ao parque do Ibirapuera – um pedaço de pedra com a inscrição de que ali estávamos a meia légua da cidade, ou duas, sei lá. Digo “repousaria”, porque pelo menos até alguns anos atrás ele estava lá. Meia légua dá mais ou menos três quilômetros, e a rua França Pinto, não com esse nome, é uma das ruas mais antigas da Vila Mariana – e por isso tinha marcos. Havia um desses marcos também na avenida Celso Garcia, mas já se foi.

Outro pequeno pedaço, e este não tão antigo, estava ali na esquina da avenida dos Eucaliptos com a avenida Ibirapuera. Esse se foi há uns 10 anos atrás, destruído por alguém que não sei quem é, provavelmente porque atrapalhava o estacionamento dos carros na loja que ali se aninhou. No início, era parte do muro da casa que ficava ali – um muro baixo, onde, na dobra da esquina, o construtor colocou uma inscrição escrita em azulejos: avenida dos Eucaliptos (com a flecha indicando para a direita) e avenida Conselheiro Rodrigues Alves (indicando para a esquerda). Por que este último nome?, perguntarão muitos. Porque a avenida Ibirapuera, depois que cruzava o córrego da Traição (hoje canalizado sob a avenida dos Bandeirantes, construída por volta de 1970), mudava o nome para o citado acima. Curioso que a mudança não era na avenida dos Eucaliptos, mas sim no pontilhão sobre o córrego, mas o dono da casa não entendia assim.

Sem querer me alongar demais, era nessa esquina que a antiga avenida Ibirapuera, até o ano de 1968, deixava de ser uma avenida de duas pistas, com o canteiro central mais largo do que é hoje e com duas linhas de bonde paralelas correndo sobre ele, para se transformar em uma estrada de terra com as duas linhas reinando soberanas – quem morava ali tinha de se utilizar das estreitas faixas de terra de cada um dos lados das linhas para entrar com seus carros para a garagem – quando a garagem existia. Ela seguia assim, mudando de nome (mais tarde, por volta também de 1970, o nome depois da avenida dos Bandeirantes foi trocado para Vereador José Diniz, ilustre vereador do qual pouquíssimos sabem que importância teve – eu não sei) e “desaguando” na avenida Adolfo Pinheiro, por onde seguiam os trilhos até o centro de Santo Amaro, em ângulo agudo, na esquina da rua da Fraternidade. E mais: para quem não sabe, o córrego da Traição era até 1934 a divisa entre os municípios de São Paulo e de Santo Amaro, e as ruas do outro lado da Bandeirantes – reparem – todas trocam de nome (com exceção da avenida Santo Amaro, antiga estrada de Santo Amaro) e, além disso, têm a numeração iniciada do “lado errado”, ou seja, começavam no centro de Santo Amaro. Apesar da incorporação dos municípios, a numeração foi mantida invertida. Finalmente: que não se confunda o antigo nome “Conselheiro Rodrigues Alves” com o da avenida na Vila Mariana, com o mesmo nome até hoje e – não é coincidência – onde por ela passavam os mesmos trilhos da mesma linha.

Voltando à simpática inscrição nos azulejos, alguém transformou a casa, lá pelos anos 1980 mais ou menos, em loja e tirou o muro – mas teve o bom senso de manter a inscrição no lugar. Há uns 10 anos, por aí, sabe-se Deus se a casa foi vendida ou não, demoliram o marco. Que tristeza! E o incauto aqui jamais o fotografou.

Por fim, outros pedaços de um passado não tão longínquo reaparecem de vez em quando, como aquele que surgiu da terra removida na rua Veneza – trilhos de bondes que não foram retirados, apenas foi passada uma camada de asfalto sobre eles. Isso também emociona não somente a mim, que os conheci e neles andei, mas também a mais gente. Tanto que a promessa para esses trilhos, desencavados há duas ou três semanas, é deixá-los ali como se um bonde fantasma por ali passasse eventualmente.

3 comentários:

  1. Algumas semanas atrás, o JT publicou reportagem sobre os trilhos que descobriram por acaso na Rua Veneza, nos Jardins. A reportagem repercutiu bem entre aqueles que se importam com a memória tão ignorada desta cidade, mas deixou-nos a todos preocupados com o que seria feito. Hoje decidi passar por lá para finalmente fotografá-los. Ao perguntar para um dos operários que lá trabalhavam onde estavam os trilhos, ele me respondeu que estavam ali, "mas já foram aterrados". Ou seja, mais uma vez a memória de São Paulo parece estar escorrendo pelo ralo, sem que nenhuma voz se levante indignada. Um mês atrás, falava-se em manter os trilhos lá, como peças de museu. Agora já ninguém se importa mais?

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  2. Olá, Ralph!

    Como você deve saber, foram iniciadas as obras de extensão da linha Lilás na região da Av. Adolpho Pinheiro. As escavações na pista Centro-Largo 13 de Maio já começaram, e apareceram os trilhos da antiga linha de bonde que seguia até lá!
    É uma ironia, descontinuaram os bondes, e agora vão gastar os tubos para refazer o percurso, com a diferença que os trilhos serão subterrâneos...

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  3. eu sou de moema ... e lembro desse letreiro azulejado de esquina ... branco com os escritos num azul profundo... bem interessante... enquanto a loja ali era da fiat eles mantiveram o letreiro na esquina ... bonito... conservado ... escrito praça dos eucalyptos ...com as setas e nomes das ruas ja descritos nesse post.... quando a renault entrou a primeira coisa que ele fizeram foi remover o muro ... mas fiquem calmos eu mesmo vi ... retiraram inteiro o painel curvo de azulejo...eu mesmo vi a remoçao ... uns dizem que foi parar no galpao da prpria loja...que fica ao fundo ... outros que foi para o casarão da fazenda de moema ( la sorella hoje em dia ) e outros que esta em algum museu por ai ... ainda nao encontrei mas vou encontrar

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