quinta-feira, 19 de março de 2009

O IMPOSTOR

Às vezes, entramos em delírio. Tentamos, no meio de nossas pesquisas, imaginar qual teria sido a melhor hipótese para explicar determinado fato ocorrido há cem, duzentos anos, e que não confere com o que lemos em fontes diversas. Talvez por ficar procurando inúmeras possíveis explicações, que nada mais passam de hipóteses sem provas, acabamos por escrever, literalmente, bobagens. Imaginamos o impossível, como, por exemplo, como poderia ter sido a volta do bandeirante de Goiás para sua velha Santana de Parnaíba, quase quatrocentos anos depois:

Ele era o Anhanguera. Bartolomeu Bueno da Silva era já um nome esquecido, ele gostava de ser o Anhanguera, o homem que pôs fogo na água e impressionou os índios. Foram eles que lhe deram o nome. Ele se sentia importante com isso, embora tenha feito isso para salvar a própria pele. Mesmo naquela virada de século, do dezessete para o dezoito, as notícias corriam rápido.

Um dia, porém, ele resolveu ver o que existiria para lá do rio Grande, do rio Paranaíba. Um rio tão longínquo com o nome de sua cidade. Ele deu o nome ao rio. Ah, mas alguns dizem que foi outro? Deixe para lá, ele sabe que foi ele, ele se lembra do fato. Fundou Goiás, a cidade que lembra Parnaíba, mas não seu nome. E resolveu ficar por lá, depois de brincar um pouco de procurar ouro. Achou, mas não era muita coisa. O lugar era mais sossegado do que sua Parnaíba, ninguém o conhecia a não ser as pessoas que chegaram com ele. Era tudo bem tranquilo.

Porém, hoje ele estava se sentindo estranho. Acostumado a andar quilômetros a fio pela mata, ele olhava tudo em volta e achava tudo muito... estranho. A terra era dura, preta, quente: mesmo com seus pés duros e rijos de andar por tantos anos sem botas, sapatos ou sandálias, ele sentia que naquele negócio parecido com piche ele não conseguia seguir viagem. Passou a andar ao lado, na sombra. Nos cantos, ainda havia terra. Depois de alguns dias, ele chegou ao rio Paranaíba. Não havia conversado com ninguém até então. As pessoas o olhavam estranho, e ele até sabia por que: ele estava vestido de uma forma bem diferente deles. Estava descalço, enquanto ninguém que passava por ele estava. Geralmente usavam umas roupas coloridas, calças e camisas justas... muito estranho. Isso quando não estavam dentro de umas carruagens de metal pretas ou brancas, vermelhas e outras cores. Algumas dessas carruagens eram bem grandes e barulhentas. Soltavam fumaça preta. Ele, por sua vez, parecia um mendigo; ele cruzou com um ou outro desses, mas mesmo esses usavam sapatos. Além disso, ele não entendia direito o que as pessoas falavam ao lado dele: parecia português, mas diferente do que ele estava acostumado. Aliás, ele sabia e gostava de falar mesmo era a tal língua geral com seus amigos indígenas. Esses, então, ele não viu nenhum por todo o caminho.

Sentindo-se inseguro, resolveu ir para Parnaíba. À medida que ia para o sul, o barulho, o tal piche, o número de pessoas era cada vez maior. Várias carroças de metal quase o atropelaram, mas ele ainda era ágil. O que teria acontecido? Ele teria atravessado um atalho temporal causado por uma tempestade de ventos solares? Teria ele dormido trezentos anos, como Rip van Winkle? Estaria ele sonhando? A terceira hipótese era a mais provável, mesmo porque ele nem conseguia imaginar as duas primeiras. Não era cientista, não lia histórias em quadrinhos nem jamais havia ouvido falar no tal Rip, aliás, aparecido num conto de literatura norte-americana. Porém, ele não estava sonhando. Era tudo real demais, o que lhe levava de novo ao começo: o que teria acontecido? Sem resposta, ele continuou andando. E, milagre ou não, orientação animal ou não, acabou chegando a Parnaíba.

Ali cruzou o rio Tietê numa ponte dura e sólida, nada parecida com a que existia no tempo em que deixou a cidade. Aliás, ele percebeu que nem no mesmo lugar ela estava. No lugar das ilhas, espuma branca... e fedida. No lugar da cachoeira, uma parede. O que tinham feito com a sua Parnaíba? A sua igreja estava lá, mas era maior do que a que ele conhecia. O piche estava nas ruas que ele conhecia em terra. Havia muita gente em frente à Matriz e carroças de metal estacionadas e também rodando por ali. Devia ser domingo, pois muita gente estava naquele momento saindo de dentro da igreja. Parecia que era uma festa. Viu sua casa ali do lado, mas estava muito diferente. E havia um sujeito estranho, que cumprimentava a todos, mas tinha uma roupa bem diferente da dos outros: botas, calças largas, chapéu, uma faixa cruzando o peito. Eram roupas de couro, e as pessoas em volta usavam era roupa de pano. Ele se aproximou do sujeito e ouviu-o se apresentando aos que o cumprimentavam: “Bom dia, sou Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera”!

Isso foi demais para ele. Saltou à frente do impostor e gritou-lhe exatamente isso: “impostor”! O outro se surpreendeu e foi um rebuliço enorme. E Anhanguera, o velho, continuava gritando, em português mesmo: “Quem és tu para dizeres que sou eu e ainda vestindo essa roupa ridícula? Tu és um impostor! Os Fernandes sabem disso? Sabem que há um impostor por aqui fazendo-se passar por mim com uma roupa de palhaço?” Ninguém acreditou nele. Alguns policiais (bem “alguns”, pois policiais são raros em Santana de Parnaíba) o cercaram e o agarraram, levando-o para a delegacia, que, aliás, era ali na frente. E não houve como Anhangüera convencê-los de que ele era o próprio. Foi preso e algemado, e não houve ameaça de pôr fogo no rio que o salvasse.

Está até agora preso no xilindró ali na praça. O pessoal em volta comenta que um louco se fez passar por Anhangüera e que deve ter sido muito interessante ver o mendigo ameaçar o grande intérprete dele mesmo.

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