domingo, 16 de setembro de 2012

A VELHA SOROCABANA EM PIRACICABA

Escola Normal Sud Mennucci - anos 1940

Texto enviado por Celso Dias de Moraes:


Acordo às vezes matutando se foi em outro país, ou em outro mundo, que cresci e passei os anos formadores da juventude, apesar de me encontrar hoje nos mesmos lugares. Nossa falta de tradição e de preservação dos bens culturais chega a ser agressiva às pessoas à medida que vão envelhecendo.


Perambulo por Piracicaba, minha terra natal, procurando reconhecer lugares, uma casa, um muro, como se procurasse os traços de alguém numa fotografia de infância, pequenos pormenores que nos acendam alguma recordação, pormenores aparentemente sem importância para muitos mas que compõem a memória individual e coletiva.


O Itapeva. Quantos piracicabanos hoje sabem o que significa essa palavra? Córrego lodoso que serpenteava no meio da cidade, barrancos sempre cheios de mato, leito de pedras escorregadias onde fluíam águas ora tranqüilas, que permitiam que se pegassem peixinhos com peneira, ora bravias com as chuvas de verão, às vezes arrastando para a morte algum moleque desprevenido com suas cheias súbitas. Deixou há muito de ver a luz do dia, coberto pelo cimento de uma frenética avenida central.


A seu lado, corriam os trilhos da Sorocabana com seus trens que enchiam de vida o centro de Piracicaba. Quando voltávamos do ginásio no “Sud Mennucci”, éramos frequentemente bloqueados pela cancela do trem e ficávamos a observar a locomotiva negra, com seus detalhes verdes e a chaminé encimada pelo capitel brilhante de latão, indo e vindo a manobrar vagões de madeira. Na praça da estação recoberta de paralelepípedos, um bebedouro central para os animais, e carroças, carrinhos de mão e caminhões encostados carregando sacaria no armazém ao lado.


Desde muito pequeno levavam-me para um passeio, só para diversão: tomávamos o bonde no centro da cidade, descendo a rua do Rosário e atravessando a ponte velha até a parada na estação da Vila Rezende. Esperávamos lá o trem da Sorocabana e retornávamos ao ritmo da maria-fumaça à estação central, onde descíamos com os demais passageiros, como se estivéssemos chegando de longa viagem. Como isso parece civilizado, europeu, nos dias de hoje...


Como todo menino da época, vibrei com o acesso do E. C. XV de Novembro à primeira divisão do futebol paulista. Tanto que não perdia jogo no estádio da rua Regente Feijó, a dois quarteirões de minha casa, onde tinha ainda o privilégio de uma cadeira cativa no alto da arquibancada. De lá se divisava um bom trecho dos trilhos da Sorocabana. Vinham sinuosos da direção da Vila Rezende, entre casas e descampados, até desaparecerem à minha direita. Nas tardes de sofrimento, quando para as emoções infantis o XV travava batalhas de vida ou morte no gramado, meu olhar se perdia ao longe onde surgia o leito da estrada de ferro. É que, num dado momento, sempre se ouvia o apito lá para aquelas bandas e dali a pouco surgia a locomotiva negra a lançar fumaça. Crescia à medida que se aproximava, balançando como se fosse saltar dos trilhos estreitos. Na curva que fazia atrás do estádio apitava e eu tinha tempo de observar as características e a numeração da locomotiva, o número de carros do comboio, as cabecinhas nas janelas, até que tudo desaparecesse atrás das casas á direita.


Dizia-se que o trem dava sorte. Ao ouvir o apito, ao sentir tremer a terra à sua passagem, a torcida e os jogadores do XV criavam novo ânimo. Se era verdade não sei, mas era uma esperança que a gente tinha de virar o jogo naquele momento. O que eu sei com certeza ainda hoje é que, naquele instante, eu não via jogo nenhum: a Sorocabana me fascinava.

Um comentário:

  1. Lindo o texto do escritor. Me transportou para minha infância onde também vivi estas coisas até meus 10 anos (1970). Ainda pequeno tive o privilégio de ver (e me recordo até hoje) o Pelé jogar contra o XV.

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