Mogiana, estação de Ribeirão Preto, 1913. (A Vida Moderna, 17/4/1913)
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Em Observando
(Impressões de Viagem), artigo publicado por Sud Mennucci em jornal não
identificado, em 10/08/1911, uma descrição da época, de uma viagem pela Mogiana
(e também pelo trecho Estação da Luz a Campinas, pela São Paulo Railway e pela
Companhia Paulista de Estradas de Ferro). Sud, meu avô materno, que publicou o
artigo com um de seus pseudônimos, Saul Maia, quando o escreveu tinha 19 anos
de idade e estava retornando para Cravinhos, onde era professor no distrito e
estação de Alvarenga, e o fazia talvez pela última vez, pois, em 24 de julho de
1911, havia começado como professor em Piracaia.
A questão era saber por que estaria ele
em São Paulo Talvez tenha sido essa sua primeira vez na Capital. Recém-formado
e já trabalhando numa escola primária na estação de Alvarenga, na época a terminal
do curto ramal de Cravinhos, em “bitolinha”, três anos mais tarde prolongado até
Serrinha, hoje Serrana. Ele tinha então dezenove anos e até então havia passado
toda sua vida em Piracicaba, onde nasceu. Eu jamais soube que ele esteve na
cidade antes de começar a trabalhar como professor depois de formar-se no final
de 1908 e passar um ano (1909) estudando francês..
“Tive a sorte ou a infelicidade de ir a
Cravinhos e como os leitores sabem, o trajeto de São Paulo àquela cidade não é
curto. Antes pelo contrário. Depois, a hora matinal, nesses dias de junho, não
convida ao despertar. Na Luz, mesmo àquela hora, já havia o formigueiro humano
de costume. Mas o frio, capaz de gelar todos os apêndices da face humana fazia
com que eu embarcasse o mais depressa possível porque a atmosfera do carro
devia seguramente ser bem mais agradável.
Lá
dentro, com o carro cheio como estava, o calor do corpo desprendendo-se sem
poder sair, a maciez dos bancos da Paulista convidavam bem a se reencetar o
sono interrompido. Havia de fato um pesado silêncio de pessoas acordadas muito
cedo e que mesmo com os movimentos do comboio dormitavam, achando bem melhor o
reino de Morfeu do que os jornais. Demais a paisagem não atraía. Era a mesma
monotonia dos campos verdes, com, ao longe, as colinas envoltas num nevoeiro
cerrado. Cercas sucedendo-se continuamente, falta absoluta de homens nos terrenos
cultivados. E o ruído sincrônico do vagão parecia também um bocejo
intermitente.
Até
Campinas fomos assim. Eu dava rápidas corridas d’olhos pelo “Estado” de vez em
quando acendendo um cigarro num grande bocejo, misturava a minha fumaça a alguma
que havia no carro. E enquanto o trem corria por trás de nós o sol elevava-se
aos poucos como um grande sorriso de fogo. Chegamos enfim a Campinas, sem
termos parado nas estações intermediárias, paradas geralmente deleitáveis nas
horas quentes do dia, quando o calor é demasiado e que nos fazem apreciar os
tipos excêntricos de cada lugarejo, cujo ponto de reunião é infalivelmente a
estação. Apenas uma pequena demora em Jundiaí. Já aqui, ponto de baldeação para
a bendita estrada Mogiana, os passageiros, como que acordavam, tomavam outra
vida. Depois, a demora incitava as pessoas ao vinho do Porto, ao conhaque, aos
doces, pastéis e sanduíches, o que, aliviando o estômago, criava a alegria. Não
há ninguém mais aborrecido do que o homem com estômago vazio ou em desarranjo
e... não é descoberta nenhuma.
Enfim
partimos. Olhei em redor de mim. Nem uma cara amiga. Comecei a fitar a
paisagem. Agora, com o sol radioso, as colinas destacavam-se nítidas, extensas
e contínuas, numa linha sinuosa e mansa, perdendo-se até onde a vista alcança.
E por sobre elas o manto verde negro dos cafezais, que se alinhavam sombrios,
em linhas retas, parecia uma vasta cabeleira penteada pelas ruas. Colonos
ativos, alegres e álacres, de um ar satisfeito de quem, enriquecendo a outrem,
ganha a vida folgada, saudaram-nos a passagem. E lá em cima, ladeado de nuvens
brancas, que diminuíam aos poucos, o sol orgulhoso fazia rebrilhar as águas
estagnadas, o orvalho, as folhas... No caro já não era possível o sono. Antes
que tudo o decoro, as conveniências, a vaidadezinha de se não mostrar
dorminhoco e, em segundo lugar, como argumento convincente, que venceria mesmo
a falta de vaidade, os abalos e os trambolhões com que nos costumam ajudar a
digestão os carros da Mogiana, faziam com que todos estivessem acordados.
Olhei de novo o vagão: não tinha com
quem encetar palestra. Com desconhecidos não desejava que tal se desse, pois
que são distraidores que não valem o café, doces e almoços que se lhes pagam,
como prêmio à sua profissão. Mas a paisagem cansara-me. Estava abrindo o meu Stecchetti quando, em frente de mim,
rompe uma conversa. Eram dois sujeitos que falavam em literatura. Um deles,
encostado à portinhola do carro, sentindo frio, pois estava com as mãos nos
bolsos das calças, à milanesa. Contudo não se esquecera de deixar o indicador
para fora, onde se luzia um grande rubi envolvido num chuveiro de brilhantes,
que ressaltavam do fundo do colete preto. Era gordo, corado, com a pele do
rosto picotada e nos cantos dos olhos rugas denunciantes da extravagância do
rapaz.
O cabelo ondeado, preto, mal
penteado. Estava metido num fato de
casimira que tinha com certeza entrado no balanço passivo há uns quatro ou
cinco anos. Estava imóvel, pronunciando as palavras alto e como que de uma cátedra.
Pela atitude e pelo anel foi-me fácil saber quem era: era um bacharel. O outro,
um moço, bigode rapado, chapéu de palha de abas largas, fazia gestos muito
largos, com as mãos calçadas de luvas de lã. Magro, alto, a testa pequenina, a
boca sensual, os olhos sem expressão, bulia com insistência na gravata e na
corrente do relógio de ouro maciço. Falavam de poesia. (...) – Esses grandes
homens, esses grandes literatos têm quase todos um fim trágico. Veja como
morreu esse célebre russo, o conde Leon Tolstoi. – Quem? O barulho do trem era
grande e o outro com a sua asserção triste abaixara a voz demais e o moço não
ouvira. (...) Um viajante inoportuno, abrindo a portinhola do carro interrompe
a frase.
(...) O moço meio acanhado virou a
olhar fora do vagão, quando o outro mostrou-lhe uma fotografia e chamou-lhe a
atenção: – Veja o retrato de meu picapau, mais velho! – Oh! Bonitinho – e
condescendente – tem um olhar esperto! E o bacharel, agora pai, tomado de gozo
por aquele elogio, com o olhar mais vivo, sorriu: – É... é terrível! – Por que
o doutor não manda a estudar em São Paulo? Lá sim se aprende. Eu estou agora
cursando o 4º ano do Ginásio Macedo Soares e tenho avançado muito bem. – É
muito criança. Mas antes de mandá-lo a São Paulo, daqui a um ano ou dois, ponho-o
no colégio em Itu. – Como? Por que, doutor? – Por que? Porque o menino tem
primeiro que fortalecer o espírito, ter fé, formar o seu caráter, ser um homem.
Meus sobrinhos, que você conhece como rapazes corretos, sérios, direitos,
estiveram quatro anos no colégio de Itu. E depois eu tenho experiência própria.
– Eu já fui progressista, socialista, coletivista, anarquista, até niilista e
voltei depois ao catolicismo convencido de que era a melhor religião. O
estudante arranjando o nó da gravata, não quis contradizer. – Sim. Tem razão...
E eu que o escutava era capaz de jurar que de toda a sua aprendizagem ginasial
tinha apenas ficado sabendo duas coisas: que Deus não existe e que a hora
presente é a melhor ilusão. Separaram-se. O bacharel sentou-se e o rapaz foi
dizer galanteios a uma demi mondaine que nos acompanhava.
Atrás de mim ouvia confusamente dois
velhos falando de fazendas e de café, viajantes de casas comerciais dizendo
para onde iam, onde tinham estado, a bondade dos negócios feitos. Retomei o Stecchetti, já que a paisagem era
desoladora. Estendia-se em campos enormes, de vegetação rasteira meio crestada
pelo sol de julho. E a grande planície deslizava chata, sem uma prega, como um
lago de águas dum amarelo escuro.
Avizinhávamo-nos de Casa Branca. O trem
apitou. Lá estávamos. Entraram para o carro quatro padres. Dois deles eram
desses tipos normais de padres que passam boa vida, ombros largos e, como não
compreendem as espáduas fartas sem o bandulho cheio, tinham o ventre roliço,
intumescido, para a frente. Corados, rapados, nos olhos uma expressão grave de
cura das almas e de bom vinho. Os outros dois eram originais. (...) O padre
moço, e de bico adunco tinha vindo sentar-se a meu lado, bem em frente à cocotte. O comboio parou em São Simão. O
bacharel e o estudante desceram e este último ficou à espera do adeus da tal
senhorita. Mas como ela estava distraída, ele assobiou como quem chama um cão.
E a cocotte, talvez a isso
acostumada, virou-se e acenando com a cabeça e com a mão despediu-se, enquanto
o trem punha-se de novo em movimento.
Já não havia quem me distraísse assim
gratuitamente. Lancei-me de novo ao meu livro. As belas poesias iam me
prendendo e por bem meia hora lá ia eu, absorto, alheio ao mar sem fim dos
cafezais que agora, na sua verdadeira terra, se levantavam eretos... De repente
voltei-me. No carro apresentava-se um ato delicioso. O meu padre moço, enquanto
o viajante que ele tinha vindo cumprimentar dormia tinha aberto amplamente o
“Estado” e fingia lê-lo. Era apenas um pretexto, pois que de fato ele tapava o
rosto a um outro viajante, que olhava primeiro para ele e depois para a tal
senhorita e sorria, com sorriso sarcástico e inteligente. Olhei, curioso,
também. O padre namorava escandalosamente a demi
mondaine, que mestra na sua profissão,
lhe retribuía com toda a amabilidade. E o trem corria, corria sempre,
fazendo-me antever, a cada badalada das rodas nos trilhos, que daí a pouco, em
Cravinhos, eu iria perder essa fonte de risotas e sorrisos que o padre sem pejo
ia oferecendo à minha curiosidade.”
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