O paraíso, a tranquilidade... acervo Roland Baraud
O primeiro que viu foi um menino. Devia ter uns 8, 9 anos. Era por volta de 5 e 15 da tarde. Os ônibus começavam a passar cada vez mais rápido, tentando chegar a algum lugar antes que as filas aumentassem naquele cruzamento de duas enormes avenidas, ambas com canteiro central. Várias pessoas atravessavam a rua tentando chegar aos pontos dos coletivos - no meio da rua, junto ao canteiro - e elas tentavam desviar umas das outras para não colidirem em meio à sua pressa.
Anoitecia rápido - era outono, quase inverno na cidade no princípio de junho. O menino seguia ali, fito em algo que achava estranho e curioso. Logo outras pessoas pararam e se juntaram a ele, tentando entender o que acontecia. Algumas começaram a apontar e a conversar com o menino: - Eu também estou vendo! Ali! Veja como eles se mexem devagar! - Eles também nos vêem? Os ônibus vão passar por cima deles! Ali! - Opa, um passou no meio deles! - Ei, mas o que é isso? Eu não estou vendo nada! Será que todos estão malucos? - Eu também não enxergo coisa alguma... o que está acontecendo?
O que estava acontecendo era que o menino e cada vez mais gente viam um casal muito bem vestido, com roupas de época e também algumas crianças, estas com roupa de marinheiro, andando no meio da rua e dos estacionamentos fronteiriços dos edifícios, às vezes saindo e entrando das construções atravessando as paredes como se elas não existissem. O mato! Dava para ver o mato se mexendo com o vento! Eles nem ligavam para os ônibus e automóveis que passavam rápido por ali, ou mesmo estavam parados esperando o semáforo abrir e o tráfego andar.
As pessoas, o mato, o cachorro que passava correndo, eram como fantasmas, transparentes, mas com um contorno muito nítido, como que iluminado por uma luz dando uma forma muito definida a tudo aquilo. Quem eram eles? Por que somente algumas pessoas os viam e outros não? Quanto mais escuro ficava, mais nítidos eram eles. Aliás, era certo que eles não nos viam, pois senão, assustar-se-iam com os veículos movendo-se contra eles, as pessoas meio assustadas, meio maravilhadas, fitando-os nos olhos, cara a cara, quase se tocando.
Uma cena maravilhosa. Em vez de as pessoas que os viam se assustarem, elas pareciam cada vez mais extasiadas de estarem presenciando tudo aquilo no meio da cidade feia, cinza, apressada, esburacada, suja. Aos poucos, todos se foram. Tanto os "espectros" quanto a sua assistência. Precisavam todos voltar para casa. No dia seguinte, isso se repetiu. Depois, dia após dia, quem acreditava voltava para ver, sempre que possível... às vezes, o casal não aparecia. A paisagem, no entanto, sim, contrastando com o concreto colorido e duro.
Por que alguns os viam e outros não? Seria porque aquilo espelharia o desejo de tranquilidade de cada um de nós? Aquelas pessoas, com suas roupas e atitudes, viviam há cem anos. Seriam elas os moradores da chácara que ali existia nessa época? Nenhuma dessas ruas existia. Era bonito ver as crianças atirando pedras no córrego. Córrego? Mas não há água ali hoje... - Há, sim! Veja aquela baixadinha ali. O rio passava ali, cortava a avenida. Hoje é uma galeria de concreto sob a terra. Nós somente o vemos quando aqui inunda.
Seria tudo isso um sinal para que nós possamos conhecer um pouco da tranquilidade de cem anos atrás? Ver o que todos perdemos? Comparar as coisas, como numa folha de papel transparente com um desenho a bico de pena sobreposta sobre uma fotografia atual do mesmo local?
terça-feira, 1 de junho de 2010
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Excelente! Texto assustador e que ao mesmo tempo convida à reflexão. O leitor vai compreendendo aos poucos e fica cada vez mais curioso para entender o que está acontecendo. Não me canso de lhe agradecer e parabenizar pelos textos que escreve.
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