domingo, 14 de novembro de 2010

A SOMBRA DE CARTAGO

A fotografia acima foi publicada no jornal O Estado de S. Paulo hoje e mostra uma avenida - não consegui identificar exatamenta qual é, mas é na zona azul e nem tem uma concentração de prédios tão grande assim em termos de São Paulo. Mas vejam, por exemplo, ao fundo, uma floresta de edifícios e notem em três prédios em primeiro plano no canto direito da foto três heliportos sobre eles - consequência de uma cidade onde as vias terrestres e eo transporte público já não dão conta do recado.

Dizem que o orador grego Catão terminava seus discursos com a frase "delenda Cartago", ou seja, "que se destrua Cartago", cidade fenícia localizada na antiga Fenícia; hoje a cidade estaria na Tunísia. Cartago foi de fato destruída ao fim de quase 120 anos de guerra. Na verdade, foram três guerras interrompidas por longos intervalos entre elas. Porém, no final da última, em 146 a.C., Cartago foi, efetivamente, destruída - ao ponto de ser arrasada para que jamais se tornasse uma ameaça para Roma - ameaça comercial, no final das contas.

Grande parte das pessoas que vivem na atualidade acham que o Brasil - e, no centro disso, a maior cidade brasileira, São Paulo - deve ser destruído para que possa crescer. Mas como é mesmo isso? Como poderá ele crescer se for destruído? Como São Paulo poderá realizar essa façanha? Por que escrevi essa frase que antagoniza com ela mesmo? Porque construção gera empregos e dinamiza a economia - por outro lado, o excesso de construções que não são realmente necessárias acaba a médio prazo com o ambiente modificado à força.

Bem, a verdade é que São Paulo vem sendo destruída há décadas. Até os anos 1960, a cidade era habitável. Porém, crescia cada vez mais rápido - em número de habitantes e de área densamente habitada. No início dos anos 1950, havia ultrapassado a cidade do Rio de Janeiro em população, tornando-se a maior cidade do país.

Demolição do Palacete Prates em 1953

Nos anos 1950, construções do início dos anos 1910 estavam indo para o chão, como o belíssimo Palacete Prates, na esquina do viaduto do Chá com o Parque Anahngabaú, dando frente para a rua Líbero Badaró. No seu lugar foi logo construído um prédio de escritórios de mais de vinte andares. A construção de edifícios de apartamentos e de escritórios ainda se dava na esmagadora maioria das vezes na área central da cidade, mas a partir dos anos 1960, a deterioração da área, causada em parte pelo excesso de prédios, começou a fazer com que essas construções se espalhassem com muita força sobre os bairros em volta do centro.

Nos anos 1970, prédios já eram comuns em Higienópolis, Jardins e outros bairros. Hoje, não existe bairro sem prédios, sejam de que natureza for. E, aqui, falo de construções com mais de oito, dez andares, não daqueles pequenos prédios de 3, 4 ou 5 andares. Chegam hoje a 30, 40 andares. É a destruição de uma cidade através da construção de "arranha-céus", depois chamados de "espigões" e hoje de "torres". A cidade, claro, não comporta isso. Nem em infra-estrutura nem em fluxo de tráfego. Nem em transporte público.

Plataforma lotada na estação Paraíso - Foto Alexandre Giesbrecht

O transporte público que está aí não aguenta mais do que já faz. Se 30% da população que usa automóvel largar seus carros em casa e passar a usar metrô, trens e ônibus, não vai haver carros suficientes nos três modais. A Prefeitura autoriza "torres" muitas vezes contra a promessa das construtoras de fazer obras de infraestrutura no local, inclusive, em alguns casos, na remodelação das ruas e avenidas - mas isso não é suficiente; nunca é.

Não é preciso ser engenheiro, arquiteto, administrador ou prefeito para ver que isso não funciona e que a cidade está saturada; os investidores em construção civil, no entanto, não se preocupam com isso e continuam lançando suas "oportunidades de investimento".

O que li hoje no Caderno de Imóveis do jornal O Estado de S. Paulo é simplesmente aterrador: é a proposta (mais uma) de destruição de bairros inteiros da cidade, vista unicamente pelos olhos das construtoras e do SECOVI. Falam da "orla ferroviária", que engloba muitos bairros ao longo das linhas férreas, fala do Bom Retiro... prega a derrubada do que existe lá hoje - em grande parte, galpões antigos, alguns tombados - para a construção de enormes edifícios, "enormes" em qualquer parâmetro que o leitor quiser interpretar.

Daniel Teixeira/O Estado de S. Paulo, 14/11/2010

Veja a fotografia acima, tomada, quase que certamente, na rua Borges de Figueiredo, na Mooca. Esta rua tem uma série de galpões antigos que eram utilizados para a estocagem de bens que seguiam desses armazéns para o porto de Santos ou para o interior pela via férrea. O que impede de eles serem hoje transformados em lofts residenciais ou de escritórios sem terem sua aparência externa alterada e sem que sejam derrubados para a construção de prédios que, de certa forma, não têm necessidade de estar ali? A função de sua construção é apenas a de "revitalizar" a área (só prédios revitalizam? A médio prazo, acabam com a área), de fazer dinheiro (pelas construtoras e incorporadoras) através de uma mídia que não reflete a realidade. E a maioria das pessoas acredita... e compra.

Vale a pena destruir casas como estas,no Bom Retiro, para construir edifícios? - Foto: Daniel Teixeira/O Estado de S. Paulo, 14/11/2010

Estava na hora de algum político "de peito" acabar com essa farra. Não estou aqui falando apenas de tombamento de imóveis, de se manter a memória da cidade, ou "coisas desse tipo". Estou falando da própria sobrevivência da cidade. Essas maravilhosas construções de hoje são, com certeza, o estopim da deterioração num futuro não muito distante. Acredito que todos saibam disso, mas... agem como cegos, pois o dinheiro manda em tudo. O futuro que se dane.

Falta um Catão moderno em São Paulo, para terminar seus discursos (ou em seus e-mails, hoje em dia) com uma fease do tipo "Salvemos Cartago, desculpem, São Paulo, da destruição"!

8 comentários:

  1. Três coisas.
    1 - A avenida que cruza a 1ª foto é a Luiz Carlos Berrini. A região é o Brooklin (qual deles, não sei).
    2 - Além do Palacete Prates, dois outros ao lado dele, igualmente belos, foram demolidos então.
    3 - Não temos que esperar políticos. Temos que nós mesmos aumentarmos o volume de nossas manifestações, pra dizer que essa cidade, já adoentada, caminha celeremente para um enfarto, que causará imensos danos a milhões de habitantes, e ao país. Esse, sempre repito, é o maior problema de saúde pública do Brasil, e tem que ser tratado de modo sincrônico pelas três esferas administrativas: federal, estadual e municipal. Aumentemos o som de nossas trombetas!

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  2. Os palacetes ao lado do Prates foram demolidos mais tarde, Britto. O imediatamente ao lado foi-o em 1973 e o outro (Clube Comercial) foi-o por volta de 1960.

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  3. "'Delenda Cartago', dizia o grande Catão", uma das frases de Asterix de que eu sempre me lembro.

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  4. Infelizmente as melhorias que foram feitas no passado foram se perdendo. Até a década de 1960 não havia muitos limites para o tamanho de prédios em SP. Com a lei do zoneamento, de 1972, foram definidas as áreas onde os prédios eram permitidos e definidos limites para eles em termos de número de apartamentos e andares. Foi uma medida muito racional, feita para preservar (ou minimizar a perda) da qualidade de vida na metrópole. Contudo, a tendência absurda de concentração de pessoas em cidades e bairros já existentes reverteu essa melhoria. E não só em SP: na Baixada Santista, onde os prédios com mais de dez andares haviam sido proibidos na esteira do zoneamento feito na Capital, agora é comum ver monstros com 25 a 30 andares sendo feitos - e não foram sequer citadas (muito menos vistas) eventuais compensações para a infraestrutura urbana. Ou seja: nos próximos anos, a qualidade de vida nessas cidades, já bastante comprometida nos últimos tempos, piorará ainda mais. Os políticas, donos de incorporadoras e imobiliárias, obviamente, estarão bem longe da muvuca que criaram.

    E isso tudo num país com uma área enorme e ainda pouco explorada em sua maior parte. O que não faz a ganância...

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  5. A lei de zoneamento dos anos 1970 e os planos diretores posteriores deveriam ser, isoladamente, imutáveis. Por isso foram criados. Porém, o fato de existir um sucessor já altera tudo; e, cada vez que ase atinge o limite percentual para edifícios que foi estabelecido num dos planos, o que se faz? Altera-se e aumenta-se o limite! Um absurdo! Então, para que o limite?

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  6. É a velha história: a lei, ora a lei...

    Infelizmente isso é mais um sintoma do nosso país: a falta de ética das grandes (e endinheiradas) corporações e nossa indolência em fazer valer os nossos direitos. Uma real democracia, infelizmente, exige massa crítica para funcionar - e, ainda assim, dá um trabalhão e muito aborrecimento para se poder peitar (e, ainda assim, às vezes de forma mal-sucedida) o poder econômico.

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  7. Curiosamente, ontem (15/11) o JN fez uma reportagem sobre a construção acelerada de prédios de apartamentos em SP e outras capitais brasileiras. Um dos exemplos de supersaturação mostrados foi justamente a av. Eng. Berrini.

    Mas um fato absurdo me chamou a atenção: já tem paulistano levando 15 minutos só pra sair de seu prédio! Ou seja, o congestionamento de trânsito já começa no corredor interno da garagem!

    Pior foi o fecho da reportagem, onde um engenheiro da Prefeitura de SP afirmava que "a prefeitura não pode impedir a construção de novos empreendimentos, mas tão somente pedir as medidas compensatórias".

    Como assim, não pode proibir absurdos? Não seria o caso de se limitar a ocupação humana em regiões onde já se leva 15 minutos para o automóvel sair de sua garagem nas horas de pico? O que vamos esperar? Não há medida compensatória economicamente viável que dê jeito nessa espiral de entupimento progressivo da cidade.

    Mas o problema é mundial. Essa reportagem pegou como gancho um incêndio na China e um desabamento na Índia de prédios feitos às pressas, também em países que estão apresentando rápido crescimento econômico e populacional.

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  8. O congestionamento nas garagens já faz parte do cotidiano de quem mora em certas partes do Brooklin há pelo menos uns quatro anos, que foi quando saiu uma reportagem a respeito no JT. E há ainda o congestionamento para sair dos prédios comerciais da Berrini, o que gera muita hora extra do pessoal que não está a fim de ficar parado na saída da garagem/estacionamento.

    Também dei minha contribuição à discussão em meu blog, mas focando na Água Branca.

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