sábado, 29 de novembro de 2014

A LÍNGUA PORTUGUESA SOBREVIVERÁ?


Em agosto de 1919, a linha-tronco da Sorocabana terminava na estação do Brejão, a oitocentos quilômetros de São Paulo e hoje chamada de Alvares Machado. Estava ela 14 quilômetros à frente da de Presidente Prudente e 42 de Indiana. Faltavam ainda 91 quilômetros para a linha chegar a Porto XV de Novembro, ou a estação de Presidente Epitácio, hoje.

Tudo o que está à frente de Indiana, hoje, ou seja, 133 quilômetros de linha, está abandonado. A concessionária ALL não a usa há anos. Mas em 1919, quase cem anos atrás, embora a linha estivesse funcionando até Brejão, parecia haver uma chefia do trecho de 42 quilômetros à frente da estação de Indiana nesta estação. Pelas notícias dos jornais da época, era em Indiana que se tomavam as decisões naquela terra ainda tomada pela selva e pelos índios... e eventuais fugitivos da justiça, além dos primeiros colonizadores que iam chegando.

Enquanto isto, em Porto Ferreira, no ramal de Descalvado da Companhia Paulista das Estradas de Ferro, a cerca de, sei lá, uns 600 quilômetros de Indiana em linha reta, um homem de 27 anos de idade chamado Sud Mennucci sustentava sua família - esposa e uma filha de um ano e meio de idade - vivendo como repórter autônomo e como professor primário no Grupo Escolar da cidade - escola que hoje leva seu nome.

Mas o que é que tem Sud Mennucci a ver com a estação de Indiana e com o assunto deste artigo que hoje escrevo?

Eu estava procurando dados sobre a estação de Indiana, inaugurada no ano anterior (1918) nos arquivos do jornal O Estado de S. Paulo e achei, na mesma página em que se publicou algo sobre a longínqua Indiana, um dos inúmeros artigos que Mennucci escrevia para diferentes jornais, inclusive o atual Estadão. O artigo versava sobre o descaso dos brasileiros com a língua portuguesa.

Li o artigo, achei interessante e notei que, enquanto a linha da Sorocabana foi degradada em grande parte nestes últimos noventa e cinco anos, o descaso com a língua portuguesa também piorou e muito. As relações são apenas estas.

O que dizia meu avô Sud neste artigo? Nada de muito diferente do que percebemos hoje. Ontem mesmo, recebi de um amigo, pela Internet (Sud não tinha esse recurso em 1919), as "pérolas do ENEM" desde ano. Já há alguns anos aparecem esses e-mails, coleções de frases escritas nesse exame nacional que serve como classificatório para a maioria das faculdades e que são frases que, de tão mal escritas, em muitas delas nem se consegue entender o que o sujeito quer dizer.

"Cei que gostaria que você passa-se o Natal em casa". Acabo de inventar a frase, mas há dois erros inacreditáveis nela e que foram extraídos das novas "pérolas do Enem". E se fossem duas pessoas? Eu "çaberia" que vocês "passa-sem" o Natal em casa? Olhem só o drama da língua portuguesa - ou brasileira, pois ela começa hoje a ser muito diferente já da original de Portugal.

Vale lembrar que, em 1919, o analfabetismo no Brasil era superior a 70%. O ensino era melhor do que hoje, mas havia falta de escolas públicas para um povo muito mais ponre, que não podia pagar por escolas particulares, que também não eram muitas. Hoje o analfabetismo é considerado oficialmente como sendo inferior a 10% (e é incrível que ainda exista), mas muitos especialistas falam que o número real pode chegar a 30%, se considerarmos as pessoas que sabem apenas assinar o próprio nome.

Esse analfabetismo de antes e de agora seriam uma das causas do nosso desapego à própria língua de nosso país? Pode ser. Porém, Sud escreveu sua opinião sem citar a altíssima taxa de então. O Brasil tinha então 25 milhões de habitantes - hoje tem 190. Na sua opinião, era a língua, apesar de tudo, a única coisa que mantinha o país coeso.

Quais seriam as outras caracteísticas que faziam com que um país fosse também uma nação e que pudesse manter a sua nacionalidade, mesmo quando ele havia eventualmente perdido sua liberdade? Sud mencionou três exemplos: a Polônia, a Boêmia (que passou, com o fim da guerra mundial, um ano antes, a se chamar Tcheco-Eslováquia ao se seprar do Império Austro-Húngaro) e a Finlândia. Todos países que não eram independentes até a eclosão da guerra de 1914-18, mas que já o haviam sido em tempos remotos e que conseguiram, duzentos, trezentos ou mais anos depois recuperar sua independência. E conseguiram-nas porque tinham em cada território uma só raça (hoje diríamos etnia), uma só língua e uma continuidade geográfica (sem separações territoriais).

Mas o Brasil não tem essa continuidade? Sud alegava que sim, mas que, como era (e ainda é) muito grande, não havia comunicações entre o Norte e o Sul (na época, somente se ia do norte para o sul por navios marítimos, fluviais, e cavalos, por péssimas estradas, quando as havia). E as etnias... bem, havia diversas etnias e raças, como as há até hoje. Era por causa disso que Sud achava que fortalecer a língua era fundamental.

Ele não falava da língua inglesa, que o brasileiro passou a adorar, principalmente a partir do estabelecimento dos Estados Unidos como modelo e como superpotência após a Primeira Guerra. Falava do francês, língua mais apreciada pelas ricas famílias da época, queiam passar férias na Europa e não em Nova York. Quanto ao inglês da Inglaterra, apesar da grande influência deles durante o século XIX, eles não tiveram por algum motivo a mesma força que os americanos tiveram no século XX.

Reparem: a grande maioria das lojas, empresas, estabelecimentos comerciais e escritórios que temos -  têm nomes ingleses, por que é "chic". Por que isto não acontece nos países de língua espanhola da América Latina, que sofrem as mesmas influências que nós? Sud não explica isto.

Porém, Sud defende que um americano, de nome John C. Branner, então Presidente Emérito da Lelland Stanford University, alertou os brasileiros sobre o problema da língua, pois os americanos começavam, com a destruição da Europa e a ascendência de Tio Sam, a inundar o mercado brasileiro com seus produtos. E preservar a língua ajudaria a preservar ao país sem ameaçar sua integridade. E era o próprio Branner que falava que os americanos eram ignorantes em relação ao que se passava fora de seu território e que se começassem a pensar em aprender alguma língua para se comunicar com a América não-inglesa, escolheriam facilmente o espanhol, pois, para eles, era tudo igual - embora Branner soubesse que o Brasil era diferente.

Precisávamos tomar uma atitude, segundo Sud:

"Para ser-se capaz de tal gesto seria preciso ter-se o orgulho da propria lingua, o amor e o respeito pelo proprio falar. Eo brasileito não o tem. Será possivel? 

Tanto o é que nós, ha muito tempo, não fizemos mais nada do que deturpar o nosso idioma. É um facto doloroso, que está ás vistas e á analyse de todo o mundo: estamos esphacelando o portuguez, com o desprezo de gente que se sente apodrecer por dentro (...)" e continuava, num texto não tão curto.

O português da transcrição é o da época. Aliás, muito mais fácil do que o de hoje, sem quase acentos, etc. As reformas ajudaram a deturpar nossa língua. Nestes cem anos houve pelo menos três. Pensem: se já havia gente que se preocupava com a deterioração de nossa língua há 95 anos, imaginem hoje...

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