terça-feira, 3 de maio de 2016

CONVERSA A TRÊS: O QUE ACABOU COM AS FERROVIAS PAULISTAS?

Locomotiva V-8 em Campinas. Foto Orlando Stepanov.

Quarta-feira, 14 de abril de 2004. Discussão pela Internet envolvendo três férreo-fãs. O primeiro fez as perguntas, o primeiro a responder e o terceiro são a mesma pessoa e o segundo a responder, a terceira pessoa. Não publiquei seus nomes aqui, não sei se o desejariam.

É uma discussão sobre a tração a eletricidade nas ferrovias paulistas, da qual não participei - apenas ia lendo à medida que chegavam as mensagens, na época, via e-mails. Alguns comentários são bem da época, o da Ferroban e o dos ônibus elétricos, por exemplo. A conversa abrange outros assuntos também.

Pergunta:

Como a tração elétrica pôde sobreviver tanto tempo em São Paulo, o estado mais rico do Brasil? Foi falta de investimento puro e simples ou dava certo mesmo? Sempre li e ouvi que a tração elétrica só era rentável em ferrovias de muito movimento. Falava-se que as V8 tinham um baixo performance para cargas. Porém, a capacidade de tração de uma V8 não era muito diferente de uma RS ou G12.

Parece que em São Paulo teria havido um investimento nas ferrovias ainda menor em termos absolutos e em percentuais do que no âmbito federal. Os carros de passageiros de bitola larga mais modernos foram os PS da década de 1950. Os carros da bitola larga já pareciam verdadeiras relíquias nos anos 1970, quando comparados com os carros da Noroeste e Central.

Fica a impressão que as ferrovias paulistas ficaram completamente esquecidas a partir de 1960, principalmente nas linhas que se dirigiam para o oeste – quase todas. Já na Mogiana, que era norte-sul, ocorreram diversas retificações, mas fruto de um plano de estabelecer a ligação com o Sul do país, o chamado Tronco Sul. Hoje se fala muito que a Ferroban deteriorou de vez a Paulista, mas a meu ver a empresa é especializada, ou pelo menos tenta ser, em transporte de cargas. Mas quando lemos as estatísticas antigas da Revista Ferroviária, notamos que o transporte de cargas em ferrovias de São Paulo nos anos 1980 já era pequeno e pior, não demonstrava tendência de crescimento.

Primeira resposta com comentários:
Você se esqueceu dos carros Budd 800 de inox que a E. F. Araraquara recebeu em 1963. Mas em vários aspectos de conforto eles eram inferiores aos PS da Sorocabana ou mesmo a outros carros de aço carbono da CP.

Em São Paulo ocorreram diversos fatos que ajudaram a intensificar a decadência ferroviária, apesar de aqui estarem as melhores ferrovias do país. O irônico é que isso foi causado pela própria riqueza trazida por elas. São Paulo foi o primeiro estado com uma malha rodoviária de primeira grandeza, com rodovias asfaltadas cruzando todo o estado já no início da década de 1960. Também tinha uma classe média que se motorizou rapidamente.

Entre 1967 e 1969 todos os meus tios se motorizaram na base do fusquinha de segunda mão. Só meu pai acabou não comprando carro, para grande frustração da família... mas, se não fosse isso, eu teria perdido boa parte das viagens de trem que fiz até meados da década de 1970.

A expansão rodoviária continuou até hoje, com estradas de pista dupla até as fronteiras do estado - e mesmo em dose dupla, como é o caso da Anhanguera-Bandeirantes, Dutra-Trabalhadores... e a frota automotiva crescendo de forma proporcional.

Ou seja, de meados de 1960 pra cá a demanda por transporte coletivo diminuiu e a ainda existente passou a ser atendida pelos ônibus, os quais apresentam horários muito mais flexíveis, usam combustível subsidiado... e o número de pedágios nas décadas de 1960 e 70 era nulo ou muito menor do que é hoje. Dessa forma deixou de haver pressão popular por um transporte de passageiros ferroviário, já que essa demanda passou a ser atendida pelos ônibus ou carros particulares.

Com as cargas ocorreu algo parecido. O café, principal motivação das ferrovias paulistas, praticamente deixou de existir após a grande geada de 1975. As demais cargas passaram a escoar por caminhão mesmo, graças a ampla rede rodoviária já formada.

A sobrevivência da tração elétrica realmente é algo admirável. Deve ser herança da impecável administração e manutenção da CP e EFS, que a manteve funcionando até quase o ano 2000. Seu sucateamento era ventilado no início dos anos 1970, mas a crise do petróleo acabou abortando o plano até 1985. Mas de fato é intrigante ver que ela durou até 1995, quando a FEPASA ameaçou tirá-la de vez e só não o fez de fato porque o governo teria de investir em novas locomotivas e não havia mais interesse em investir numa empresa que deveria ser privatizada mais cedo ou mais tarde.

Segunda resposta com comentários: 

Creio que o fator mais marcante da eletrificação foi na verdade a falta de visão e de investimentos no setor para se procurar e ter alternativas geradoras de energia. Apesar de todas essas hidroelétricas existentes (e São Paulo havia saído na frente muito tempo antes), elas são hoje insuficientes para manter o país funcionando. Todo o consumo aumentou. Vamos de novo para a história:

Creio que era perfeitamente administrável com poucas usinas abastecedoras e várias subestações manter em funcionamento as ferrovias até 1975. A demanda por quilowatts era ínfima. Até minha juventude, as lâmpadas máximas eram de 100W. E nem todos tinham eletricidade em casa. Nem geladeira, nem TV, nem videogames, nem micro, nem chuveiro. Tomava-se banho esquentando água. Lembra-se das gamelas? De repente o país cresceu e mudou seu perfil. Passou a um país embora de terceiro mundo, com translocação de pessoal da zona rural para a urbana. E também o crescimento das indústrias. Isso gerou um boom que não foi acompanhado pelo setor elétrico.

Hoje, embora estejamos de novo dando atenção para a zona rural (maior exportação de produtos agrícolas) essa também mudou e muito. Todo o interior tem consumo elétrico, seja com geladeiras, TVs, rádios, etc, e não são mais movidos a geradores de querosene. São provenientes de rede elétrica sim. Faz diferença e muito. Passamos de - 90 milhões em ação - prá frente Brasil - em 1970, para 160 milhões em 2003. Ou seja, quase o dobro em 30 anos. Se se contar que uma pessoa pode ser produtiva a partir dos 20 anos, a defasagem é essa. Dobramos em 30, geramos filhos produtivos somente à partir dos 20, mas que também consumiram não impunemente para a sociedade durante o período improdutivo
(0-20 até mais).

Nossas fontes geradoras de energia são finitas. Embora os USA já estejam enchendo o nosso saco (vide Iperó), somente as fontes alternativas não naturais tipo radioativas, serão capazes de tocar isso aqui para a frente. As fontes naturais (gás, petróleo, água, vento, resíduos de produtos agrícolas) somente serão coadjuvantes locais. É a nossa diferença em relação à Europa. Quando se diz que lá os trens são elétricos, há de se lembrar que eles têm inverno com neve. O degelo lento é fonte inesgotável de mini-usinas que os abastecem. Isso nós não temos por aqui. Embora acho que felizmente. Frio, neve e os outros dramas desse clima não são os que eu particularmente acho ideais. Todo o restante das mazelas ferroviárias ficam por conta dessa mudança de hábitos rapidamente.

Rodovias viraram prioridade? Sim. Pelo menos em São Paulo estão boas? Sim (com um baita custo pedágio). Mas também temos culpa nisso. Se eu posso ir de carro porta a porta, porque ir de trem e depois ter que pagar um táxi, um ônibus ou um metrô para chegar aonde
quero e preciso? Também governos tem culpa. Já que a nossa postura era assim, então, os trens de passageiros deveriam ser somente uma pequena parcela para atender os menos favorecidos. Muitos dos altíssimos custos em se manter essa decadência e ineficiência, já mais do que realista (sabemos disso) poderia ter sido evitada.

Somos todos fanáticos por trens, brigamos, falamos pacas, mas eu pergunto e gostaria da sinceridade de cada um da lista: Se ainda hoje houvesse trem disponível, você faria o percurso São Paulo-Presidente Prudente em 18-20 horas, para depois alugar um carro e ir até a barranca do Paranapanema, para ver um parente? Ou iria de carro em mais ou menos seis horas, porta a porta? Mudou bastante. Na verdade, tudo se traduz em pequenas
observações: Tivéssemos governantes patriotas, inteligentes e de visão, isso aqui seria um baita dum país. Tivéssemos um povo culto, poderíamos ter mudado. Infelizmente, a realidade é outra. Nem o primeiro foi e será tudo isso, e nem o segundo será algo, pelo menos por mais algumas décadas.

Isso posto, voltamos à situação de crescimento a todo custo, sem planejamento. Deu no que deu.

Terceira e última resposta:
Sem dúvida, hoje a eletricidade é praticamente inviável para uso ferroviário a longa distância, em função de seu custo. Ainda mais que num futuro máximo nossa demanda terá de ser atendida por termoelétricas, provavelmente a gás natural. Aliás, esse é o combustível que abastece os tróleibus que estão sendo retirados das linhas paulistanas (NOTA DESTE BLOG: Isto acontecia em 2004, mas deixou de ser feito).

Há o aspecto da diminuição da poluição decorrente do uso da hidroeletricidade, mas este é um aspecto polêmico se for feito um balanço ecológico global, pois as represas das hidrelétricas causaram um grande impacto ecológico nas regiões inundadas. Enfim, é papo para uma bela tarde num boteco...

Mas, de fato, em última análise foi a classe média que causou o fim dos trens de passageiros, ao optar irrestritamente pelo transporte individual e aceitar a alternativa rodoviária em outros casos. Cá entre nós: a maioria dos trens de passageiros brasileiros não conseguia competir em rapidez e conforto com um monobloco MB rodando numa boa estrada de terra.

O carro é um tremendo vilão ecológico, mas o conforto e liberdade que ele proporciona são inigualáveis. Só mesmo mexendo (e muito) no bolso é que o cidadão parte para o transporte coletivo.

Há alguns anos tive um ataque de eco-xiitismo e resolvi ir de São Vicente a Sacramento de ônibus para evitar o stress da estrada. Foi tanto desconforto, problemas e inconvenientes - para mim e acompanhantes - que decidi, sempre que possível, nunca mais repetir a experiência... De trem (se houvesse) não iria ser muito diferente, embora o conforto tenda a ser um pouco maior.


6 comentários:

  1. Ótimos comentários e expressam bem a verdade que convivemos hoje, 12 anos depois de terem sidos tecidos. TODOS nós somos culpados. Governantes e população. Falta de investimentos e também falta de interesse dos dois lados causou o que temos hoje.
    Tanto se xinga a ALL/Rumo, mas são empresas que visam lucro e não o saudosismo. Não acho certo o que fazem. Cada foto/imagem que vejo de trechos abandonados parte meu coração, mas é a realidade que temos que conviver. As empresas de Logísticas não vão desperdiçar dinheiro com linhas ou ramais obsoletos, que não trazem o lucro que eles almejam. Se estes trechos, estivessem em bom estado de conservação e fossem novamente devolvidos para a União, haveria interesse de alguma empresa de logística para arrendar? Com com certeza, poucas ou nenhuma empresa iria querer, pois são obsoletos. Infelizmente, vivemos em uma realidade que quase ninguém quer enxergar.

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  2. Bom, Herico, eu acho que as ferrovias deveriam qu não têm trafego deveriam ser imediatamente recolhidas pelo governo e este "atualiza-las" para trens de passageiros e para cargas. A verdade é que muitos dos trechos, se for para fazer trens regionais, nem precisarão de retificações. Outros sim. O que não pode é ficar largadas.

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  3. Os contratos de privatização foram mal feitos. Teriam de exigir que as concessionárias mantivessem toda a malha em operação, inclusive com trens de passageiros.
    Como ficou tudo por conta da lógica neo-liberal, as empresas só operam os trechos mais lucrativos e só transportam as cargas mais lucrativas. Nós, no lugar deles, faríamos a mesma coisa. Parte do prejuízo da RFFSA e da Fepasa ocorria porque elas tinham uma preocupação social.

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  4. Mas será que a ALL não sabia que a malha era obsoleta ? É obrigação da ALL manter também esses ramais em operação e não somente aqueles que ela quiser, Ora então se as concessionarias de energia elétrica agir como a ALL elas só iriam se preocupar em fornecer energia para grandes centros urbanos e deixariam as pequenas cidades jogada as traças , Por isso digo é obrigação da ALL manter tudo funcionando e cuidar.

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  5. O excesso de corrupção no país, de forma generalizada é que levaram a destruição de tudo em relação as base de crescimento, entre elas, Educação, Saúde, Transportes (ferrovias e estradas).

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  6. Q TRISTEZA, NA ÍNDIA, NA CHINA E PAÍSES POBRES NA ÁFRICA, O TRANSPORTE FERROVIÁRIO É PRIORIDADE. SE OS CIDADÃOS DE BEM IGUAIS À NÓS NÃO SE UNIREM E TOMAREM UMA ATITUDE.....

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