Locomotiva V-8 em Campinas. Foto Orlando Stepanov.
Quarta-feira, 14 de abril de 2004. Discussão pela Internet envolvendo três férreo-fãs. O primeiro fez as perguntas, o primeiro a responder e o terceiro são a mesma pessoa e o segundo a responder, a terceira pessoa. Não publiquei seus nomes aqui, não sei se o desejariam.
É uma discussão sobre a tração a eletricidade nas ferrovias paulistas, da qual não participei - apenas ia lendo à medida que chegavam as mensagens, na época, via e-mails. Alguns comentários são bem da época, o da Ferroban e o dos ônibus elétricos, por exemplo. A conversa abrange outros assuntos também.
Pergunta:
Como a tração elétrica pôde sobreviver tanto tempo em São
Paulo, o estado mais rico do Brasil? Foi falta de investimento puro e simples
ou dava certo mesmo? Sempre li e ouvi que a tração elétrica só era rentável em
ferrovias de muito movimento. Falava-se que as V8 tinham um baixo performance para
cargas. Porém, a capacidade de tração de uma V8 não era muito diferente de uma
RS ou G12.
Parece que em São Paulo teria havido um investimento nas
ferrovias ainda menor em termos absolutos e em percentuais do que no âmbito
federal. Os carros de passageiros de bitola larga mais modernos foram os PS da década
de 1950. Os carros da bitola larga já pareciam verdadeiras relíquias nos anos 1970,
quando comparados com os carros da Noroeste e Central.
Fica a impressão que as ferrovias paulistas ficaram
completamente esquecidas a partir de 1960, principalmente nas linhas que se
dirigiam para o oeste – quase todas. Já na Mogiana, que era norte-sul,
ocorreram diversas retificações, mas fruto de um plano de estabelecer a ligação
com o Sul do país, o chamado Tronco Sul. Hoje se fala muito que a Ferroban
deteriorou de vez a Paulista, mas a meu ver a empresa é especializada, ou pelo
menos tenta ser, em transporte de cargas. Mas quando lemos as estatísticas
antigas da Revista Ferroviária, notamos que o transporte de cargas em ferrovias
de São Paulo nos anos 1980 já era pequeno e pior, não demonstrava tendência de crescimento.
Primeira resposta com comentários:
Você se esqueceu dos carros Budd 800 de inox que a
E. F. Araraquara recebeu em 1963. Mas em vários aspectos de conforto eles
eram inferiores aos PS da Sorocabana ou mesmo a outros carros de aço carbono da CP.
Em São Paulo ocorreram diversos fatos que ajudaram a
intensificar a decadência ferroviária, apesar de aqui estarem as melhores
ferrovias do país. O irônico é que isso foi causado pela própria riqueza
trazida por elas. São Paulo foi o primeiro estado com uma malha rodoviária de
primeira grandeza, com rodovias asfaltadas cruzando todo o estado já no início
da década de 1960. Também tinha uma classe média que se motorizou rapidamente.
Entre 1967 e 1969 todos os meus tios se motorizaram na base
do fusquinha de segunda mão. Só meu pai acabou não comprando carro, para grande
frustração da família... mas, se não fosse isso, eu teria perdido boa parte das
viagens de trem que fiz até meados da década de 1970.
A expansão rodoviária continuou até hoje, com estradas de
pista dupla até as fronteiras do estado - e mesmo em dose dupla, como é o caso
da Anhanguera-Bandeirantes, Dutra-Trabalhadores... e a frota automotiva crescendo
de forma proporcional.
Ou seja, de meados de 1960 pra cá a demanda por transporte
coletivo diminuiu e a ainda existente passou a ser atendida pelos ônibus, os
quais apresentam horários muito mais flexíveis, usam combustível subsidiado...
e o número de pedágios nas décadas de 1960 e 70 era nulo ou muito menor do que é
hoje. Dessa forma deixou de haver pressão popular por um transporte de passageiros
ferroviário, já que essa demanda passou a ser atendida pelos ônibus ou carros
particulares.
Com as cargas ocorreu algo parecido. O café, principal
motivação das ferrovias paulistas, praticamente deixou de existir após a grande
geada de 1975. As demais cargas passaram a escoar por caminhão mesmo, graças a
ampla rede rodoviária já formada.
A sobrevivência da tração elétrica realmente é algo
admirável. Deve ser herança da impecável administração e manutenção da CP e
EFS, que a manteve funcionando até quase o ano 2000. Seu sucateamento era
ventilado no início dos anos 1970, mas a crise do petróleo acabou abortando o
plano até 1985. Mas de fato é intrigante ver que ela durou até 1995, quando a FEPASA
ameaçou tirá-la de vez e só não o fez de fato porque o governo teria de
investir em novas locomotivas e não havia mais interesse em investir numa
empresa que deveria ser privatizada mais cedo ou mais tarde.
Creio que o fator mais marcante da eletrificação foi na
verdade a falta de visão e de investimentos no setor para se procurar e ter
alternativas geradoras de energia. Apesar de todas essas hidroelétricas
existentes (e São Paulo havia saído na frente muito tempo antes), elas são hoje
insuficientes para manter o país funcionando. Todo o consumo aumentou. Vamos de
novo para a história:
Creio que era perfeitamente administrável com poucas usinas abastecedoras e várias subestações manter em funcionamento as ferrovias até 1975. A demanda por quilowatts era ínfima. Até minha juventude, as lâmpadas máximas eram de 100W. E nem todos tinham eletricidade em casa. Nem geladeira, nem TV, nem videogames, nem micro, nem chuveiro. Tomava-se banho esquentando água. Lembra-se das gamelas? De repente o país cresceu e mudou seu perfil. Passou a um país embora de terceiro mundo, com translocação de pessoal da zona rural para a urbana. E também o crescimento das indústrias. Isso gerou um boom que não foi acompanhado pelo setor elétrico.
Hoje, embora estejamos de novo dando atenção para a zona rural (maior exportação de produtos agrícolas) essa também mudou e muito. Todo o interior tem consumo elétrico, seja com geladeiras, TVs, rádios, etc, e não são mais movidos a geradores de querosene. São provenientes de rede elétrica sim. Faz diferença e muito. Passamos de - 90 milhões em ação - prá frente Brasil - em 1970, para 160 milhões em 2003. Ou seja, quase o dobro em 30 anos. Se se contar que uma pessoa pode ser produtiva a partir dos 20 anos, a defasagem é essa. Dobramos em 30, geramos filhos produtivos somente à partir dos 20, mas que também consumiram não impunemente para a sociedade durante o período improdutivo
Creio que era perfeitamente administrável com poucas usinas abastecedoras e várias subestações manter em funcionamento as ferrovias até 1975. A demanda por quilowatts era ínfima. Até minha juventude, as lâmpadas máximas eram de 100W. E nem todos tinham eletricidade em casa. Nem geladeira, nem TV, nem videogames, nem micro, nem chuveiro. Tomava-se banho esquentando água. Lembra-se das gamelas? De repente o país cresceu e mudou seu perfil. Passou a um país embora de terceiro mundo, com translocação de pessoal da zona rural para a urbana. E também o crescimento das indústrias. Isso gerou um boom que não foi acompanhado pelo setor elétrico.
Hoje, embora estejamos de novo dando atenção para a zona rural (maior exportação de produtos agrícolas) essa também mudou e muito. Todo o interior tem consumo elétrico, seja com geladeiras, TVs, rádios, etc, e não são mais movidos a geradores de querosene. São provenientes de rede elétrica sim. Faz diferença e muito. Passamos de - 90 milhões em ação - prá frente Brasil - em 1970, para 160 milhões em 2003. Ou seja, quase o dobro em 30 anos. Se se contar que uma pessoa pode ser produtiva a partir dos 20 anos, a defasagem é essa. Dobramos em 30, geramos filhos produtivos somente à partir dos 20, mas que também consumiram não impunemente para a sociedade durante o período improdutivo
(0-20 até mais).
Nossas fontes geradoras de energia são finitas. Embora os USA já estejam enchendo o nosso saco (vide Iperó), somente as fontes alternativas não naturais tipo radioativas, serão capazes de tocar isso aqui para a frente. As fontes naturais (gás, petróleo, água, vento, resíduos de produtos agrícolas) somente serão coadjuvantes locais. É a nossa diferença em relação à Europa. Quando se diz que lá os trens são elétricos, há de se lembrar que eles têm inverno com neve. O degelo lento é fonte inesgotável de mini-usinas que os abastecem. Isso nós não temos por aqui. Embora acho que felizmente. Frio, neve e os outros dramas desse clima não são os que eu particularmente acho ideais. Todo o restante das mazelas ferroviárias ficam por conta dessa mudança de hábitos rapidamente.
Rodovias viraram prioridade? Sim. Pelo menos em São Paulo estão boas? Sim (com um baita custo pedágio). Mas também temos culpa nisso. Se eu posso ir de carro porta a porta, porque ir de trem e depois ter que pagar um táxi, um ônibus ou um metrô para chegar aonde
Nossas fontes geradoras de energia são finitas. Embora os USA já estejam enchendo o nosso saco (vide Iperó), somente as fontes alternativas não naturais tipo radioativas, serão capazes de tocar isso aqui para a frente. As fontes naturais (gás, petróleo, água, vento, resíduos de produtos agrícolas) somente serão coadjuvantes locais. É a nossa diferença em relação à Europa. Quando se diz que lá os trens são elétricos, há de se lembrar que eles têm inverno com neve. O degelo lento é fonte inesgotável de mini-usinas que os abastecem. Isso nós não temos por aqui. Embora acho que felizmente. Frio, neve e os outros dramas desse clima não são os que eu particularmente acho ideais. Todo o restante das mazelas ferroviárias ficam por conta dessa mudança de hábitos rapidamente.
Rodovias viraram prioridade? Sim. Pelo menos em São Paulo estão boas? Sim (com um baita custo pedágio). Mas também temos culpa nisso. Se eu posso ir de carro porta a porta, porque ir de trem e depois ter que pagar um táxi, um ônibus ou um metrô para chegar aonde
quero e preciso? Também governos tem culpa. Já que a nossa
postura era assim, então, os trens de passageiros deveriam ser somente uma
pequena parcela para atender os menos favorecidos. Muitos dos altíssimos custos
em se manter essa decadência e ineficiência, já mais do que realista (sabemos
disso) poderia ter sido evitada.
Somos todos fanáticos por trens, brigamos, falamos pacas, mas eu pergunto e gostaria da sinceridade de cada um da lista: Se ainda hoje houvesse trem disponível, você faria o percurso São Paulo-Presidente Prudente em 18-20 horas, para depois alugar um carro e ir até a barranca do Paranapanema, para ver um parente? Ou iria de carro em mais ou menos seis horas, porta a porta? Mudou bastante. Na verdade, tudo se traduz em pequenas
Somos todos fanáticos por trens, brigamos, falamos pacas, mas eu pergunto e gostaria da sinceridade de cada um da lista: Se ainda hoje houvesse trem disponível, você faria o percurso São Paulo-Presidente Prudente em 18-20 horas, para depois alugar um carro e ir até a barranca do Paranapanema, para ver um parente? Ou iria de carro em mais ou menos seis horas, porta a porta? Mudou bastante. Na verdade, tudo se traduz em pequenas
observações: Tivéssemos governantes patriotas, inteligentes
e de visão, isso aqui seria um baita dum país. Tivéssemos um povo culto,
poderíamos ter mudado. Infelizmente, a realidade é outra. Nem o primeiro foi e
será tudo isso, e nem o segundo será algo, pelo menos por mais algumas décadas.
Isso posto, voltamos à situação de crescimento a todo custo,
sem planejamento. Deu no que deu.
Terceira e última resposta:
Sem dúvida, hoje a eletricidade é praticamente
inviável para uso ferroviário a longa distância, em função de seu custo. Ainda
mais que num futuro máximo nossa demanda terá de ser atendida por
termoelétricas, provavelmente a gás natural. Aliás, esse é o combustível que
abastece os tróleibus que estão sendo retirados das linhas paulistanas (NOTA DESTE BLOG:
Isto acontecia em 2004, mas deixou de ser feito).
Há o aspecto da diminuição da poluição decorrente do uso da hidroeletricidade,
mas este é um aspecto polêmico se for feito um balanço ecológico global, pois
as represas das hidrelétricas causaram um grande impacto ecológico nas regiões
inundadas. Enfim, é papo para uma bela tarde num boteco...
Mas, de fato, em última análise foi a classe média que
causou o fim dos trens de passageiros, ao optar irrestritamente pelo transporte
individual e aceitar a alternativa rodoviária em outros casos. Cá entre nós: a
maioria dos trens de passageiros brasileiros não conseguia competir em rapidez
e conforto com um monobloco MB rodando numa boa estrada de terra.
O carro é um tremendo vilão ecológico, mas o conforto e
liberdade que ele proporciona são inigualáveis. Só mesmo mexendo (e muito) no
bolso é que o cidadão parte para o transporte coletivo.
Há alguns anos tive um ataque de eco-xiitismo e resolvi ir
de São Vicente a Sacramento de ônibus para evitar o stress da estrada. Foi
tanto desconforto, problemas e inconvenientes - para mim e acompanhantes - que
decidi, sempre que possível, nunca mais repetir a experiência... De trem (se
houvesse) não iria ser muito diferente, embora o conforto tenda a ser um pouco
maior.
Ótimos comentários e expressam bem a verdade que convivemos hoje, 12 anos depois de terem sidos tecidos. TODOS nós somos culpados. Governantes e população. Falta de investimentos e também falta de interesse dos dois lados causou o que temos hoje.
ResponderExcluirTanto se xinga a ALL/Rumo, mas são empresas que visam lucro e não o saudosismo. Não acho certo o que fazem. Cada foto/imagem que vejo de trechos abandonados parte meu coração, mas é a realidade que temos que conviver. As empresas de Logísticas não vão desperdiçar dinheiro com linhas ou ramais obsoletos, que não trazem o lucro que eles almejam. Se estes trechos, estivessem em bom estado de conservação e fossem novamente devolvidos para a União, haveria interesse de alguma empresa de logística para arrendar? Com com certeza, poucas ou nenhuma empresa iria querer, pois são obsoletos. Infelizmente, vivemos em uma realidade que quase ninguém quer enxergar.
Bom, Herico, eu acho que as ferrovias deveriam qu não têm trafego deveriam ser imediatamente recolhidas pelo governo e este "atualiza-las" para trens de passageiros e para cargas. A verdade é que muitos dos trechos, se for para fazer trens regionais, nem precisarão de retificações. Outros sim. O que não pode é ficar largadas.
ResponderExcluirOs contratos de privatização foram mal feitos. Teriam de exigir que as concessionárias mantivessem toda a malha em operação, inclusive com trens de passageiros.
ResponderExcluirComo ficou tudo por conta da lógica neo-liberal, as empresas só operam os trechos mais lucrativos e só transportam as cargas mais lucrativas. Nós, no lugar deles, faríamos a mesma coisa. Parte do prejuízo da RFFSA e da Fepasa ocorria porque elas tinham uma preocupação social.
Mas será que a ALL não sabia que a malha era obsoleta ? É obrigação da ALL manter também esses ramais em operação e não somente aqueles que ela quiser, Ora então se as concessionarias de energia elétrica agir como a ALL elas só iriam se preocupar em fornecer energia para grandes centros urbanos e deixariam as pequenas cidades jogada as traças , Por isso digo é obrigação da ALL manter tudo funcionando e cuidar.
ResponderExcluirO excesso de corrupção no país, de forma generalizada é que levaram a destruição de tudo em relação as base de crescimento, entre elas, Educação, Saúde, Transportes (ferrovias e estradas).
ResponderExcluirQ TRISTEZA, NA ÍNDIA, NA CHINA E PAÍSES POBRES NA ÁFRICA, O TRANSPORTE FERROVIÁRIO É PRIORIDADE. SE OS CIDADÃOS DE BEM IGUAIS À NÓS NÃO SE UNIREM E TOMAREM UMA ATITUDE.....
ResponderExcluir