sexta-feira, 18 de agosto de 2023

UMA VIAGEM PELO TREM DA CANTAREIRA (1940)

 

Foto publicada no jornal Diario Popular de 3/9/1940 em local desconhecido,
em algum ponto da linha do tramway da Cantareira

Em 3 de setembro de 1940, o jornal paulistano Diario Popular publicou uma reportagem sobre a Estrada de Ferro da Cantareira (chamado então de Tramway da Cantareira), com um jornalista tomando o trem na estação do Tamanduateí, na rua João Teodoro, e seguindo até a estação final do ramal de Guarulhos.

Ante as reclamações e promessas das autoridades sobre uma eventual na tração da estrada, passando a linha a ser eletrificada (fato que nunca ocorreu), a intenção dele era medir o tempo de viagem com as locomotivas a vapor ainda em funcionamento. Falava-se na incorporação desta ferrovia pela Sorocabana e, com isto, a realização do melhoramento. A transferência do tramway para a E. F. Sorocabana viria um ano depois, mas a eletrificação acabou sendo adiada até o cancelamento do tráfego em 1965.

Segue a transcrição do texto (entre aspas). Do artigo, suprimi algumas poucas linhas que falavam de aspectos técnicos. Notar também que, apenas por curiosidade, mantive a escrita da época, ainda com letras duplas e falta e diferença de diversos acentos nas palavras.

"POR ENTRE CHACARAS E FUNDOS DE QUINTAES. A Cantareira é uma estrada minúscula que corre entre chácaras e fundos de quintais. Pittoresca pela sua pequenez e pelos arrabaldes que serve, embora archaica, deslocada do século e pelo progresso que a cidade atingiu, ainda representa o melhor meio de communicação para as povoações por elas servida.

Aquelles trenzinhos que parecem correr muito cansados, que quando encontram uma subida íngreme, vão como a passo, são altamente benéficos e necessários. Elles semearam aquela região de casas modestas e de chácaras, propriedades de gente humilde. Porque quando o “tramway” surgiu ali, tudo era matagal. E muita gente não sabe que essa linha de bitola estreitíssima não surgiu para transportar passageiros e por isso fala mal dos trens. Foi uma linha de emergencia, para transportar materiaes. Primeiro, em fins do século passado, quando se pensou em abastecer S. Paulo de agua potavel construíram os depósitos da Cantareira. Depois, em 1912, sahiu o ramal de Guarulhos, por causa da aductora do Cabuçu. Em seguida gente passou a pedir conducção e os trens de carga transformaram-se em trens de passageiros. Por isso permaneceu assim como uma coisa provisória, com todos os inconvenientes das coisas provisórias que um dia irão acabar.

UMA VIAGEM PELO TREM. São 16 horas. Estamos na estação do Tamanduatehy. Uma porção de gente espera, sentada em bancos, que a bilheteria se abra. Porque o trem só vae partir dalli a meia hora e na sua infinita modéstia, a estação zinha não possue sala de espera. O chefe da estação conversa com velhos conhecidos. O sol dardeja como uma braza, o calor é suffocante. De repente, abre-se a porta, ou melhor, começa a girar a borboleta. São 16 horas e dez. Pedimos um bilhete para Villa Galvão. 900 réís, de primeira. Pagamos. O bilhete é carimbado. A borboleta gira. Estamos na gare.

Uma onda de gente segue-nos e procura acomodar-se. A segunda classe em breve fica repleta. A primeira – um só vagão – enche-se rapidamente. Sentamo-nos num banquinho estofado, para uma pessoa só. Defronte, num kiosque, vê-se uma porção de livros policiaes.

Ao lado, são servidos café expressos e vendem-se cigarros.

O sol entra na carruagem. Faz um calor doido. O trem continua a encher-se. Já não há lugar numa carruagem de primeira. Uma senhora tira o crochet e continua a trabalhar. Em volta conversa-se. Entra um mulato claro com um violão embrulhado em papel.

  - Meus senhores – diz – ouçam a hora da saudade, a melhor das horas.

Pede licença para arrumar o violão, pois não tem mais lugar e pretende viajar na varanda. Um funccionario do correio diz-lhe:

 - Pode deixar aqui.

 - Não incommoda?

 - Nada.

 - Bem, se quizer, pode tocar um chorinho. O violão está afinado.

Riem-se em volta.

Ha um choque. É a  locomotiva que acaba de ser engatada.

Mais cinco minutos e ouve-se um apito. A locomotiva solta um silvo e o trenzinho parte, através das linhas do Canindé. Faz um barulho medonho e ganha cada vez mais velocidade. Eis a várzea do Tietê que surge e, depois, o trem envereda pela avenida Cruzeiro do Sul. Mas, devido às inundações, ela ainda hoje é um projecto. O trem corre em cima de um aterro, até atingir a fabrica da Klabin. Depois, o terreno alteia-se e vão-se sucedendo os fundos de quintaes das casas da rua Voluntarios da Patria. Não há um lugar. Muita gente segue de pé, agglomerada nas varandas das carruagens.

Succedem-se as estações: Areal, Carandirú, Parada Ingleza...

Começa a descer gente. Já ha mais espaço.

CHACARAS E MAIS CHACARAS. Agora o trenzinho corre entre chacaras. Estão bonitas, verdes. Os talões de couves alternam com os de tomates. Eis uma chacara que parece um jardim. Alli são produzidas muitas flores que que vão para as feiras da capital. Os chacareiros, com regador não mão, andam de um lado para o outro. O trenzinho apita nas curvas. Para quê? Vae tão devagar, porque vae tão cheio...

Surge Vila Mazzei. Agora a linha já não tem subidas e ele corre vertiginosamente. Jaçanã surge numa curva. E, ao fundo, o hospital S. Luiz Gonzaga, moderno e amplo. Novo apito e o trem prossegue. Já leva muito menos gente. Vae agora para Villa Galvão, onde chega resfolegando. Depois, parte para Gopoúva e Guarulhos, sempre correndo... E agente chega a pensar por que não se eletrifica o “tramway”. Até Guarulhos são vinte quilometros e leva mais de uma hora. Consome só carvão ingles, aristocraticamente... O trem corre frequentemente entre quintaes. Se fosse á lenha – informam-nos – o "tramway" tornar-se-ia um incendiario terrivel (...)".

Sem dúvida, um belo retrato de uma época. 

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