Transcrito do Jornal O Globo, via Revista Ferroviária, em Notícias da Imprensa, 6/2/2023:
Para uma geração, o
trem de alta velocidade Eurostar que cruza o fundo do Canal da Mancha foi o
retrato elegante e engenhoso de um novo nível de proximidade entre o Reino
Unido e a Europa; agora, porém, ele corre o risco de se tornar o símbolo das
tensões geradas pela separação via Brexit.
Até dois anos atrás,
era possível apenas exibir o passaporte para uma inspeção rápida, mas desde
2021, depois da cisão, o passageiro britânico que vai ou vem precisa carimbar o
documento. Enquanto a pandemia mantinha as viagens em um nível mínimo, o tempo
mais longo exigido pela operação não fazia muita diferença, mas de uns meses
para cá, com o aumento no volume de usuários, as filas – e a espera – ficaram
mais longas.
A solução encontrada
pela Eurostar foi limitar o número de pessoas nos trens, preferindo assim
deixar centenas de assentos vagos em algumas linhas em vez de correr o risco
dos atrasos gerados pela verificação. Naqueles que normalmente levariam até 900
passageiros, a capacidade foi reduzida para 600. A medida entrou em vigor há
alguns meses, mas só começou a chamar a atenção de verdade na última semana,
quando foi anunciada pelos meios de comunicação britânicos.
Embora os efeitos do
Brexit na economia britânica ainda sejam objeto de estudos e debates, algumas
consequências concretas já estão ficando claras. De fato, para os críticos, o
problema com a Eurostar é apenas mais uma prova exasperante de que o país
jamais deveria ter saído do bloco.
“Todo dia se
apresentam, das mais variadas formas, provas de que o Brexit está deixando o
país mais pobre, mais fraco, menos eficiente e menos respeitado no mundo. Foi o
maior ato de autoflagelação nacional até hoje, e só começaremos a nos recuperar
quando admitirmos isso”, escreveu Alastair Campbell, antigo assessor do
ex-primeiro-ministro Tony Blair, no Twitter.
Em meados de 2022,
quando as longas filas de veranistas aguardavam a verificação dos documentos no
porto de Dover para poder embarcar nas balsas que cruzam o canal, as
autoridades britânicas culparam os franceses pela demora, acusando-os de não
reforçar o pessoal do controle alfandegário. O ministro dos transportes
francês, Clément Beaune, rebateu: “A França não é responsável pelo Brexit.”
Mark Smith, ex-chefe
de estação e fundador de um site que dá dicas de viagens férreas aos
britânicos, conta que foi um dos primeiros a andar no trem que faz o percurso
entre Paris e Londres, lançado pela Eurostar em 1994.
– No começo, ele saía
da estação Waterloo, mas em 2007 mudaram para o terminal de St. Pancras,
novinho em folha. O lançamento teve até champanhe, e foi considerado prenúncio
de uma nova proximidade entre os dois países, mesmo com a empresa servindo
outras cidades europeias, tipo Amsterdã e Bruxelas – diz. – A verdade é que
seus terminais foram projetados para uma Europa aberta, onde o viajante pode se
movimentar sem dificuldade entre um país e outro. Dava para fazer Londres-Paris
em duas horas e 15 minutos, por exemplo. Não é um sistema para situações de
limitações, cortinas de ferro e tal. Não funciona com Brexit porque, por
definição, o movimento criou uma barreira entre a França e o Reino Unido bem no
meio do canal.
Os cidadãos da União
Europeia podem se movimentar livremente de um Estado-membro para outro e ali
permanecer indefinidamente, mas quem vem de outras partes do mundo, incluindo
agora o Reino Unido, tem prazo de permanência. Como resultado, a polícia
alfandegária francesa tem de carimbar o passaporte dos britânicos – que
representam cerca de 40% do movimento da empresa – na ida e na volta, para
mostrar quando entraram no bloco e quando voltaram para casa. O Reino Unido
ainda não impôs exigência semelhante aos europeus que pegam o trem, o que lhes
facilita um pouco a viagem.
Por e-mail, um
representante da Eurostar diz que os atrasos e as limitações de capacidade são
consequência da falta de agentes e de espaço para a expansão da infraestrutura
alfandegária em seus terminais, principalmente na estação de St. Pancras em
Londres e na Gare Du Nord em Paris.
O governo francês
informa que, entre 2020 e 2021, colocou mais 15 agentes no terminal da Eurostar
na estação parisiense para agilizar a verificação, mas não revela se fez o
mesmo do lado londrino. Segundo Matthieu Ellerbach, assessor do Ministério do
Interior francês, a polícia de fronteira francesa está “inteiramente
mobilizada” para enfrentar os picos de fluxo, e novos oficiais assumirão a
tarefa nos próximos meses.
A Eurostar revela que
está trabalhando na instalação de estações de checagem de passaporte mais
automatizadas, mas no momento atual o nível máximo de capacidade entre as
estações está 30% abaixo do nível de 2019; mesmo com a ocupação integral de
todas as cabines, hoje St. Pancras consegue processar 1.500 passageiros por
hora, no máximo, 700 a menos do que em 2019.
–Estamos a par dos
problemas e em contato constante com a Eurostar e as autoridades francesas, que
estão trabalhando para garantir a agilização do processo – explica o
representante do governo britânico.
Os passageiros da
Eurostar com passaporte da União Europeia, da Islândia, de Liechtenstein, da
Noruega e da Suíça geralmente só precisam apresentá-lo nas catracas
eletrônicas, em um processo normalmente ágil. Até o Brexit, os britânicos
faziam o mesmo, com os oficiais verificando apenas a data de validade e se pertencia
à pessoa que o portava. Desde janeiro de 2021, porém, eles ficaram obrigados a
fazer um controle mais minucioso, inclusive carimbando o documento.
No início da
pandemia, quando os lucros da Eurostar caíram 95%, a empresa suspendeu o
serviço para duas estações menores no sudeste da Inglaterra, entre Londres e o
canal; agora a demanda se recuperou e já está entre 75% e 80% do volume
pré-Covid, mas, ainda assim, o serviço dessas duas unidades não será reativado.
Em carta ao comitê
parlamentar britânico para justificar a decisão, Jacques Damas, CEO da
companhia na época, disse que a reabertura só agravaria a situação, já que
tiraria agentes de Londres para atuar em unidades menores.
– É somente graças ao
fato de a Eurostar manter o limite de capacidade dos trens e ter reduzido
significativamente os horários em relação aos de 2019 que não há filas diárias
em Londres semelhantes àquelas nos portos do canal – comentou, referindo-se aos
engarrafamentos de passageiros e de carga nos portos britânicos pós-Brexit. –
Essa é uma situação que tem consequências comerciais óbvias e não é sustentável
em médio e longo prazo, mas a consequência imediata é que atualmente não temos
condições de atender à alta demanda na rota que liga as duas capitais.
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