segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

LÁGRIMAS PAULISTAS


(O post abaixo é uma transcrição de um e-mail que recebi há pouco mais de um ano de um amigo, Paulo Filomeno).

Caro Ralph:

Espero que esteja tudo bem com você. Há muito não nos falamos, mas saiba que estou sempre de olho no que você escreve. Porém, tudo vai de mal a pior nessa área ferroviária. Ainda mais para quem de certa forma está ligado profissionalmente à area como eu. É uma desilusão atrás da outra.

Ontem, em particular esse post da Sorocabana (http://blogdogiesbrecht.blogspot.com.br/2016/01/trilhos-cobertos-de-mato-e-velha.html) caiu como uma facada, por um motivo simples, que vou lhe explicar e descrever abaixo. Minha memória é normalmente muito boa, não esqueço nem o que deve ser esquecido, então você pode imaginar o que eu me lembro de minhas viagens de trem, até andanças nos subúrbios nos anos de 1978 eu lembro, passeios com meus pais para Santos em 1970 (com data e tudo) então vai vendo. 

No dia 28 de janeiro de 1981 (exatamente há 35 anos atrás), tendo acabado de me matricular na Faculdade de Engenharia e tendo que viajar para encontrar meus pais (que já tinham saído de férias alguns dias antes) em Campos Novos Paulista, cidade que fica entre Ourinhos e Marília, fui, claro, de trem. Meu primo e meu tio, que me acompanharam para a matrícula na faculdade, me levaram até a Julio Prestes, na época com a Rodoviária ainda funcionando em frente e com uma vizinhança, ainda, digamos, muito menos pior que a de hoje. Mas eles me levaram para lá não sem antes deixar os veteranos fazerem uma avenida de fora a fora no meio de minha vasta cabeleira que à propósito não via uma tesoura desde uns bons 6 ou 7 meses (aposta com os pais que ia entrar na faculdade para não precisar cortar o cabelo). Eles chamaram aquilo de "corte Larry" em alusão a um dos 3 Patetas que tinha apenas dois tufos de cabelos nas laterais da cabeça. Mas, já prevenido, havia separado um boné junto com as demais peças de viagem.

Me deixaram praticamente na esquina da Santa Efigênia com a Duque de Caxias e assim que saí do carro, muito feliz pelas circunstâncias do momento, li aquela bela inscrição "ESTRADA DE FERRO SOROCABANA" no alto do prédio (que graças a Deus ainda existe, assim como os vitrais da Paulista na Libero Badaró) e com enorme sorriso dirigi-me à entrada da Estação, sem deixar de admirar sua maravilhosa arquitetura, vitrais, etc. A fila na bilheteria não estava grande, o trem deveria sair às 20h38 e eram por volta de 19h15, pouco mais, pouco menos. Pedi uma passagem leito (mordomia que o paizão concedeu pela entrada na facu) e só havia disponível leitos superiores, teria que dividir a cabine com outra pessoa. Não me importei e comprei. Se quisesse, enquanto não viesse o sono, poderia ficar num carro de primeira classe. 

Ao dirigir-me à catraca de embarque (o trem saía na plataforma à direita de quem olha a via a partir das bilheterias), imediatamente dois guardas ferroviários e um funcionário da Fepasa me abordaram para entender qual a razão de eu estar viajando daquele modo (cabelo cortado de um jeito esquisitíssimo, roupas largadas, mala sem alça levada embaixo do braço) e ainda com uma passagem para o carro leito. Felizmente a faculdade tinha já emitido a carteirinha no momento da matrícula e poucos segundos depois lá estava eu, bicho de faculdade, com pouco mais de 17 anos conversando animadamente sobre a Fepasa, Sorocabana, etc. e tal com o funcionário, que fez questão de me acompanhar até o local onde iria encostar o carro leito, bem no final da plataforma. Lembro que ele contou de dois engenheiros que haviam sido demitidos por especificarem trilhos curvos, com raio de x metros, para serem assentados, entre outras coisas. Porém, o que era para ser 20h20 (horário do trem encostar) passou a ser 21h00 e de repente lá vem a LEW puxando um extenso comboio de 18 carros, com vários carros de segunda, alguns de primeira, depois outros tantos de segunda, mais outros de primeira e lá na frente o carro restaurante e o carro dormitório. Assim que o trem parou, o funcionário da Fepasa pediu para chamar o Chefe do Trem e explicou a minha situação. Foi então que entendi o motivo da preocupação de ficar comigo e da abordagem: Sujeitos que tinham minha aparência eram geralmente foragidos de cadeias por aí; o Chefe satisfeito com as explicações me levou até o carro dormitório, ao passar pelo carro restaurante apresentou-me a um dos garçons e finalmente ao guarda do carro dormitório, ao qual entreguei a passagem, ele me disse que seria chamado antes de Ourinhos. Nesse momento, o carro deu aquele "tranco", duas lindas locomotivas elétricas estavam sendo engatadas àquele não menos lindo trem de 18 carros, que em Ourinhos seria segmentado, parte seguiria para o Norte do Paraná e a parte da frente (com o restaurante e o dormitório) até Assis (fim do trecho eletrificado e da sinalização CTC). Das duas locomotivas, a que estava encostada no trem era a 1-C+C-1 2069, de fabricação Westinghouse e ainda na 1.a pintura da Fepasa (azul / cinza), mas a frontal era do mesmo tipo, mas da série das GE, já na 2.a pintura Fepasa (vermelha com faixas brancas) embora não me lembre seu número. E até hoje nunca consegui uma foto da 2069 para a minha coleção. Se tiver ou souber quem tenha, agradeço se puder me dar uma cópia. A vi pela última vez no final dos anos 80, no pátio do CEASA, estava dirigindo na Marginal Pinheiros e quase bati o carro quando a vi, ainda com seus pantógrafos balão.

Logo após o trem partiu, com 40 minutos de atraso, terminei de colocar minhas coisas no leito, já tinha minha "leitura de bordo", um exemplar da Revista Ferrovia, que estava sendo distribuída por um veterano que era estagiário da então RFFSA aos que estavam se matriculando na Faculdade de Engenharia. Da leitura, entre outras coisas, lembro até hoje que o "fator de massa", que deve ser utilizado num cálculo para esforços na via permanente varia de 1,03 (vagão europeu de 2 eixos) até 1,4 (locomotiva elétrica). Exemplar de janeiro de 1981, podem ir lá ver.

Mas o caso é que logo de saída, no maravilhoso e sensacional pátio da Barra Funda (que deu lugar ao - deixa pra lá) deu para ver num desvio paralelo à linha os dois trens da ex-série 5000 da CPTM que se chocaram na curva da fábrica Matarazzo no final de dez/80 (os acervos dos jornais tem a reportagem, um trem subiu em cima do outro) todos amassados e fiquei acompanhando a vista até Presidente Altino, lugar então de frequentes excursões de minha parte "para ver trem". Aí fui ao carro restaurante para jantar e conheci o senhor que viajaria comigo, de uns quase 60 anos, que me deu os parabéns pela entrada na faculdade e sugeriu vivamente que eu pedisse o Filé a Cavalo, o que acabei aceitando, embora na época, muito mimado e enjoado, não gostasse de clara de ovos. Mas estava bom. Foi a primeira vez, também por sugestão dele, que despejei azeite sobre o arroz, o que faço (não sempre) até hoje. Batemos um papo enquanto jantávamos, eu falava a ele da minha paixão por trens e ferrovias, de que ia certamente um dia trabalhar com isso, etc. e tal. Ele era representante comercial e disse que viajou muito de trem e ainda gostava, mas só fazia isso por puro gosto e reclamou do atraso, ia para Assis e tinha que voltar no mesmo dia. Disse que eu, gostando de trens, não tive chance de conhecer as verdadeiras Sorocabana e Paulista e disse que era melhor eu procurar outra coisa para fazer, pois sentia que a política ia matar todas as ferrovias (deveria ter pedido outros conselhos a ele, talvez ele me dissesse para comprar ações de uma tal de Apple ou de uma tal de Microsoft naquela época, mas na realidade ele só me falava de algo que era perceptível e eu não queria ver). Logo que terminamos, ele pediu licença para se deitar e foi para a cabine. Eu disse que iria mais tarde, mas que já poderia ir se fosse incomodar o sono dele. Ele disse que não havia problema e nessa altura o trem já se encontrava pouco a frente de Jandira, naquele trecho bastante sinuoso que até hoje os trens metropolitanos da CPTM ainda percorrem próximo de Itapevi e depois, até Amador Bueno. Mas eu acabei ficando na plataforma entre dois carros, o trem era composto dos velhos carros Budd inox e dos já não tão novos Mafersa inox, que tinham até freio a disco. Os Mafersa abriam "meia porta" e assim, ali me instalei acompanhando o trecho. De noite não dá para ver nada, embora a noite estivesse totalmente estrelada, mas o interessante era ver a cauda do trem lá atrás naquelas curvas e as duas locomotivas lá na frente trabalhando pra valer e soltando umas chispas no contato do fio com o pantógrafo de vez em quando. Aí avistava um farol verde "lá na frente", que iluminava o inox do trem com um reflexo verde e quando a locomotiva chegava e atravessava o circuito de via, imediatamente mudava para vermelho e parecia que o trem mudava de cor também.

Fiquei nessa até pouco a frente de Mairinque, lembro da estação de Amador Bueno com aquele letreiro que só tinha lá e fui para a cabine. Tentei não ser muito barulhento, nem usei o banheiro da cabine, tinha ido no banheiro de um dos carros para não fazer barulho e subi para minha cama. Mas mesmo assim o senhor me avisou para não esquecer de colocar a rede de proteção, pois num chacoalhão mais forte eu poderia ir para o chão. Realmente, não havia me atinado o que era aquilo que estava sobre a cama, agradeci, liguei a luz de cabeceira (ele já tinha ligado o ar condicionado), comecei a ler a revista e o trem seguia sua marcha pela noite da Região Sorocabana. O chacoalhar do trem e o ruído (para mim) eram altamente relaxantes, porém não conseguia pegar no sono devido à leitura interessante e aos fatos do dia também, não é todo dia que se "reza uma missa" na secretaria do colégio para entregarem os documentos a tempo (certificado de conclusão, histórico, etc.), depois ir fazer a matrícula, chamar o tio por ser menor e estar desacompanhado, pegar um trem e etc. Mas como tudo tem um lado bom, o fato de não conseguir pegar no sono me faz lembrar até hoje de algo inesquecível: O apito do chefe do trem lá longe autorizando o trem a partir das estações e o maquinista respondendo com um silvo curto. Aí o trem punha-se em marcha e uns 10-15 km depois outra estação (esse trem era parador após Sorocaba). Mas, no final das contas, acabei dormindo. Tive um despertar entre Botucatu e Rubião Júnior, mas logo voltei a dormir. Estava em sono profundo quando o guarda-cabine bateu à porta dizendo que estávamos chegando em Ourinhos. Meio zonzo, acordei, pulei para baixo e fui dar uma lavada no rosto e escovar os dentes quando percebi que o trem estava parando. Coloquei a calça não sei de qual jeito, peguei minhas coisas, me despedi rapidamente e fui correndo para sair do trem, quando o guarda disse que ainda era a estação de Canitar, que eu não me preocupasse, que o trem parava em Ourinhos por 15 minutos. Ainda estava escuro, começando a amanhecer e vi a hora: 5h55. O maquinista tinha tirado o atraso! A previsão de chegada em Ourinhos era 6h08 e eu achava que meus pais já estariam lá devido ao atraso; em épocas de telefonia precária, quando o celular não era nem considerado ficção científica, só dava pra comunicar o básico... Mas tudo estava em tempo.

Tudo estava em tempo, inclusive um maravilhoso amanhecer ao lado de um canavial, numa região que tem um "cheiro" que só quem conhece ou é de lá sabe. Eu não consigo me "lembrar" do cheiro (acho que é muito difícil lembrar de um cheiro e reproduzí-lo em seu cérebro sem ele estar presente, ao contrário de uma imagem ou som), mas quando eu o sinto, diversas lembranças me vem de imediato. O fato é que o trem passou sob o pontilhão da Raposo Tavares e logo entrou em Ourinhos. Próximo à estação, vi a velha VW Variant com meus pais parados numa cancela. O trem havia chegado primeiro. Logo o trem chegou e lá fui eu desembarcar na ponta da plataforma de uma estação repleta de gente. Desci, não sem antes cumprimentar decentemente o senhor que me acompanhara, que já estava de pé indo tomar o café no carro restaurante e aproveitei também para olhar mais de perto alguns detalhes da "Loba" 2069, o apelido da locomotiva entre os ferroviários e nunca me saiu da cabeça o enorme símbolo da Westinghouse fixado na lateral da locomotiva, bem como a locomotiva da RFFSA emum desvio lateral pronta para engatar na metade do trem com destino a Maringá. Ao chegar na frente da estação ainda meus pais não haviam chegado, pelo fato do trem ser comprido e ia ficar parado lá por pelo menos 15 minutos. Meu pai teve que retornar uns 4 quarteirões para encontrar uma cancela que o trem não estivesse fechando e assim, pouco tempo depois, chegaram.

Minha mãe, ao ver meu estado (fiz questão de tirar o boné e perdi peso por ficar sozinho em casa, e já era magro...) não sabia se ria ou se chorava, mas meu pai veio rindo logo que saiu do carro. Fomos embora e eu falando sem parar sobre a viagem, meu pai perguntando coisas esquisitas sobre que horas o trem havia passado em Campinas - ele nem sabia que as linhas se separavam na Lapa - e chegamos em Campos Novos Paulista. Fui direto para um barbeiro que já se encarregou de passar a máquina zero no corte Larry, com ajuda (documentada por fotos) do meu pai e da minha mãe.

E se passaram 20 anos e tudo se acabou, mais 15 anos e tudo se arrasou. Ontem, ao se completarem 35 anos desse dia, com a Sorocabana sendo mais nada, eu li seu post e imediatamente me veio na cabeça a música "Killing me softly with this song". Troque "song" por "notícia do meio ferroviário brasileiro", que ao invés de "song" nada mais é do que uma marchinha repetitiva e mal tocada e assim nós, os ferreo-fãs brasileiros e as próprias ferrovias vamos sendo assassinados devagarinho. E somos impotentes para fazermos qualquer coisa.

Hoje com 52 anos eu tenho saudades só de duas coisas: Do meu pai, que faleceu em 2004 e dos passeios de trem que eu fazia pelo Estado. Meu pai eu tenho certeza que vou vê-lo novamente um dia (me desculpem os que não acreditam, mas eu estou certo disso - ele está no seu site numa foto em Matão, também coincidentemente tirada há 36 anos). Mas dos trens, esqueça. Só no dia que inventarem a tal Máquina do Tempo. Mas vai ter gente querendo fazer com essa máquina coisas muito mais desinteressantes do que viajar num Carro Pullman da CP (do Trem R) em meados dos anos 50 ou ir para Santos com um dos Cometa, Estrella ou Planeta.

É isso, desculpe ter te enchido de tanto texto. Mas pela coincidência da data tive que fazê-lo. Se achar que seus leitores vão aguentar isto e quiser publicar no blog, fique à vontade.


Um abraço; Paulo Roberto Filomeno

5 comentários:

  1. Lindo texto. Realmente um assassinato o que fizeram com os trens no Brasil!

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  2. Sou de 77 e sempre lamento de não poder viajar de trem pelo estado. Sempre leio que o serviço atrasava, não era dos melhores... mas qual a diferença do que se diz do transporte rodoviário / aéreo de hoje em dia? Hoje pagamos caro por tudo graças também à logística rodoviária. Saudades do que não vivi.

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  3. Viajei com você Paulo, através deste texto maravilhoso.

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  4. O seu relato, Paulo Roberto Filomeno, me fez viajar no tempo e relembrar todas as viagens que fiz pelos trilhos da Sorocabana, entre a Julio Prestes e Santo Anastácio, da infância à adolescência, e algumas já adulto, casado e com filhos. Às vezes, também tento lembrar daquele cheiro inigualável que o vento trazia, de trem e mato.

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  5. Sobre os cheiros e a dificuldade de explicá-los ... o cheiro do Ozona produzido pelas locomotivas elétricas me dá uma saudade dos tempos que não voltam mais. Belo texto. Parabéns !!

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