(O post abaixo é uma transcrição de um e-mail que recebi há pouco mais de um ano de um amigo, Paulo Filomeno).
Caro Ralph:
Caro Ralph:
Espero que esteja tudo bem com você. Há muito não nos
falamos, mas saiba que estou sempre de olho no que você escreve. Porém, tudo
vai de mal a pior nessa área ferroviária. Ainda mais para quem de certa forma
está ligado profissionalmente à area como eu. É uma desilusão atrás da outra.
Ontem, em particular esse post da Sorocabana (http://blogdogiesbrecht.blogspot.com.br/2016/01/trilhos-cobertos-de-mato-e-velha.html) caiu como uma
facada, por um motivo simples, que vou lhe explicar e descrever abaixo. Minha
memória é normalmente muito boa, não esqueço nem o que deve ser esquecido,
então você pode imaginar o que eu me lembro de minhas viagens de trem, até andanças
nos subúrbios nos anos de 1978 eu lembro, passeios com meus pais para Santos em
1970 (com data e tudo) então vai vendo.
No dia 28 de janeiro de 1981 (exatamente há 35 anos atrás),
tendo acabado de me matricular na Faculdade de Engenharia e tendo que viajar
para encontrar meus pais (que já tinham saído de férias alguns dias antes) em
Campos Novos Paulista, cidade que fica entre Ourinhos e Marília, fui, claro, de
trem. Meu primo e meu tio, que me acompanharam para a matrícula na faculdade,
me levaram até a Julio Prestes, na época com a Rodoviária ainda funcionando em
frente e com uma vizinhança, ainda, digamos, muito menos pior que a de hoje.
Mas eles me levaram para lá não sem antes deixar os veteranos fazerem uma
avenida de fora a fora no meio de minha vasta cabeleira que à propósito
não via uma tesoura desde uns bons 6 ou 7 meses (aposta com os pais que ia
entrar na faculdade para não precisar cortar o cabelo). Eles chamaram
aquilo de "corte Larry" em alusão a um dos 3 Patetas que tinha apenas
dois tufos de cabelos nas laterais da cabeça. Mas, já prevenido, havia separado
um boné junto com as demais peças de viagem.
Me deixaram praticamente na esquina da Santa Efigênia com a
Duque de Caxias e assim que saí do carro, muito feliz pelas circunstâncias do momento,
li aquela bela inscrição "ESTRADA DE FERRO SOROCABANA" no alto do
prédio (que graças a Deus ainda existe, assim como os vitrais da Paulista
na Libero Badaró) e com enorme sorriso dirigi-me à entrada da Estação, sem
deixar de admirar sua maravilhosa arquitetura, vitrais, etc. A fila na
bilheteria não estava grande, o trem deveria sair às 20h38 e eram por volta de
19h15, pouco mais, pouco menos. Pedi uma passagem leito (mordomia que o paizão
concedeu pela entrada na facu) e só havia disponível leitos superiores, teria
que dividir a cabine com outra pessoa. Não me importei e comprei. Se quisesse,
enquanto não viesse o sono, poderia ficar num carro de primeira
classe.
Ao dirigir-me à catraca de embarque (o trem saía na
plataforma à direita de quem olha a via a partir das bilheterias),
imediatamente dois guardas ferroviários e um funcionário da Fepasa me abordaram
para entender qual a razão de eu estar viajando daquele modo (cabelo cortado de
um jeito esquisitíssimo, roupas largadas, mala sem alça levada embaixo do
braço) e ainda com uma passagem para o carro leito. Felizmente a faculdade
tinha já emitido a carteirinha no momento da matrícula e poucos segundos depois
lá estava eu, bicho de faculdade, com pouco mais de 17 anos conversando
animadamente sobre a Fepasa, Sorocabana, etc. e tal com o
funcionário, que fez questão de me acompanhar até o local onde iria
encostar o carro leito, bem no final da plataforma. Lembro que ele contou
de dois engenheiros que haviam sido demitidos por especificarem trilhos curvos,
com raio de x metros, para serem assentados, entre outras coisas. Porém, o
que era para ser 20h20 (horário do trem encostar) passou a ser 21h00 e de
repente lá vem a LEW puxando um extenso comboio de 18 carros, com vários carros
de segunda, alguns de primeira, depois outros tantos de segunda, mais outros de
primeira e lá na frente o carro restaurante e o carro dormitório. Assim que o
trem parou, o funcionário da Fepasa pediu para chamar o Chefe do Trem e
explicou a minha situação. Foi então que entendi o motivo da preocupação de
ficar comigo e da abordagem: Sujeitos que tinham minha aparência eram
geralmente foragidos de cadeias por aí; o Chefe satisfeito com as explicações
me levou até o carro dormitório, ao passar pelo carro restaurante apresentou-me
a um dos garçons e finalmente ao guarda do carro dormitório, ao qual entreguei
a passagem, ele me disse que seria chamado antes de Ourinhos. Nesse
momento, o carro deu aquele "tranco", duas lindas locomotivas
elétricas estavam sendo engatadas àquele não menos lindo trem de 18 carros, que
em Ourinhos seria segmentado, parte seguiria para o Norte do Paraná e a parte
da frente (com o restaurante e o dormitório) até Assis (fim do trecho
eletrificado e da sinalização CTC). Das duas locomotivas, a que
estava encostada no trem era a 1-C+C-1 2069, de fabricação Westinghouse e ainda
na 1.a pintura da Fepasa (azul / cinza), mas a frontal era do mesmo tipo,
mas da série das GE, já na 2.a pintura Fepasa (vermelha com faixas brancas)
embora não me lembre seu número. E até hoje nunca consegui uma foto da
2069 para a minha coleção. Se tiver ou souber quem tenha, agradeço se puder me
dar uma cópia. A vi pela última vez no final dos anos 80, no pátio do
CEASA, estava dirigindo na Marginal Pinheiros e quase bati o carro quando a vi,
ainda com seus pantógrafos balão.
Logo após o trem partiu, com 40 minutos de atraso, terminei
de colocar minhas coisas no leito, já tinha minha "leitura de bordo",
um exemplar da Revista Ferrovia, que estava sendo distribuída por um veterano
que era estagiário da então RFFSA aos que estavam se matriculando na Faculdade
de Engenharia. Da leitura, entre outras coisas, lembro até hoje que o
"fator de massa", que deve ser utilizado num cálculo para esforços na
via permanente varia de 1,03 (vagão europeu de 2 eixos) até 1,4 (locomotiva
elétrica). Exemplar de janeiro de 1981, podem ir lá ver.
Mas o caso é que logo de saída, no maravilhoso e
sensacional pátio da Barra Funda (que deu lugar ao - deixa pra
lá) deu para ver num desvio paralelo à linha os dois trens da
ex-série 5000 da CPTM que se chocaram na curva da fábrica Matarazzo no final de
dez/80 (os acervos dos jornais tem a reportagem, um trem subiu em cima do
outro) todos amassados e fiquei acompanhando a vista até Presidente Altino,
lugar então de frequentes excursões de minha parte "para ver trem".
Aí fui ao carro restaurante para jantar e conheci o senhor que viajaria comigo,
de uns quase 60 anos, que me deu os parabéns pela entrada na faculdade e
sugeriu vivamente que eu pedisse o Filé a Cavalo, o que acabei aceitando,
embora na época, muito mimado e enjoado, não gostasse de clara de ovos. Mas
estava bom. Foi a primeira vez, também por sugestão dele, que despejei azeite
sobre o arroz, o que faço (não sempre) até hoje. Batemos um papo enquanto jantávamos,
eu falava a ele da minha paixão por trens e ferrovias, de que ia
certamente um dia trabalhar com isso, etc. e tal. Ele era representante
comercial e disse que viajou muito de trem e ainda gostava, mas
só fazia isso por puro gosto e reclamou do atraso,
ia para Assis e tinha que voltar no mesmo dia. Disse que eu,
gostando de trens, não tive chance de conhecer as verdadeiras Sorocabana
e Paulista e disse que era melhor eu procurar outra coisa para fazer,
pois sentia que a política ia matar todas as ferrovias (deveria ter pedido
outros conselhos a ele, talvez ele me dissesse para comprar ações de uma tal de
Apple ou de uma tal de Microsoft naquela época, mas na realidade ele só me
falava de algo que era perceptível e eu não queria ver). Logo que terminamos,
ele pediu licença para se deitar e foi para a cabine. Eu disse que iria
mais tarde, mas que já poderia ir se fosse incomodar o sono dele. Ele
disse que não havia problema e nessa altura o trem já se encontrava pouco
a frente de Jandira, naquele trecho bastante sinuoso que até hoje os trens
metropolitanos da CPTM ainda percorrem próximo de Itapevi e depois, até
Amador Bueno. Mas eu acabei ficando na plataforma entre dois carros, o trem era
composto dos velhos carros Budd inox e dos já não tão novos Mafersa
inox, que tinham até freio a disco. Os Mafersa abriam "meia porta" e
assim, ali me instalei acompanhando o trecho. De noite não dá para ver nada,
embora a noite estivesse totalmente estrelada, mas o interessante era ver
a cauda do trem lá atrás naquelas curvas e as duas locomotivas lá na frente
trabalhando pra valer e soltando umas chispas no contato do fio com o
pantógrafo de vez em quando. Aí avistava um farol verde "lá na
frente", que iluminava o inox do trem com um reflexo
verde e quando a locomotiva chegava e atravessava o circuito de via,
imediatamente mudava para vermelho e parecia que o trem mudava de cor também.
Fiquei nessa até pouco a frente de Mairinque, lembro da
estação de Amador Bueno com aquele letreiro que só tinha lá e fui para a
cabine. Tentei não ser muito barulhento, nem usei o banheiro da cabine, tinha
ido no banheiro de um dos carros para não fazer barulho e subi para minha cama.
Mas mesmo assim o senhor me avisou para não esquecer de colocar a rede de
proteção, pois num chacoalhão mais forte eu poderia ir para o chão. Realmente,
não havia me atinado o que era aquilo que estava sobre a cama, agradeci, liguei
a luz de cabeceira (ele já tinha ligado o ar condicionado), comecei a ler a
revista e o trem seguia sua marcha pela noite da Região Sorocabana. O
chacoalhar do trem e o ruído (para mim) eram altamente relaxantes, porém não
conseguia pegar no sono devido à leitura interessante e aos fatos do dia
também, não é todo dia que se "reza uma missa" na secretaria do colégio
para entregarem os documentos a tempo (certificado de conclusão, histórico,
etc.), depois ir fazer a matrícula, chamar o tio por ser menor e estar
desacompanhado, pegar um trem e etc. Mas como tudo tem um lado bom, o fato de
não conseguir pegar no sono me faz lembrar até hoje de algo inesquecível: O
apito do chefe do trem lá longe autorizando o trem a partir das estações e o
maquinista respondendo com um silvo curto. Aí o trem punha-se em marcha e uns
10-15 km depois outra estação (esse trem era parador após Sorocaba). Mas, no
final das contas, acabei dormindo. Tive um despertar entre Botucatu e Rubião
Júnior, mas logo voltei a dormir. Estava em sono profundo quando o
guarda-cabine bateu à porta dizendo que estávamos chegando em Ourinhos. Meio
zonzo, acordei, pulei para baixo e fui dar uma lavada no rosto e escovar os
dentes quando percebi que o trem estava parando. Coloquei a calça não sei de
qual jeito, peguei minhas coisas, me despedi rapidamente e fui correndo para
sair do trem, quando o guarda disse que ainda era a estação de Canitar, que eu
não me preocupasse, que o trem parava em Ourinhos por 15 minutos. Ainda estava
escuro, começando a amanhecer e vi a hora: 5h55. O maquinista tinha tirado o
atraso! A previsão de chegada em Ourinhos era 6h08 e eu achava que meus pais já
estariam lá devido ao atraso; em épocas de telefonia precária, quando
o celular não era nem considerado ficção científica, só dava pra comunicar
o básico... Mas tudo estava em tempo.
Tudo estava em tempo, inclusive um maravilhoso amanhecer ao
lado de um canavial, numa região que tem um "cheiro" que só quem
conhece ou é de lá sabe. Eu não consigo me "lembrar" do cheiro (acho
que é muito difícil lembrar de um cheiro e reproduzí-lo em seu cérebro sem ele
estar presente, ao contrário de uma imagem ou som), mas quando eu o sinto,
diversas lembranças me vem de imediato. O fato é que o trem passou sob o
pontilhão da Raposo Tavares e logo entrou em Ourinhos. Próximo à estação,
vi a velha VW Variant com meus pais parados numa cancela. O trem
havia chegado primeiro. Logo o trem chegou e lá fui eu desembarcar na ponta da
plataforma de uma estação repleta de gente. Desci, não sem antes cumprimentar
decentemente o senhor que me acompanhara, que já estava de pé indo tomar o café
no carro restaurante e aproveitei também para olhar mais de perto alguns
detalhes da "Loba" 2069, o apelido da locomotiva entre os
ferroviários e nunca me saiu da cabeça o enorme símbolo da Westinghouse fixado
na lateral da locomotiva, bem como a locomotiva da RFFSA emum desvio lateral
pronta para engatar na metade do trem com destino a Maringá. Ao chegar na
frente da estação ainda meus pais não haviam chegado, pelo fato do trem ser
comprido e ia ficar parado lá por pelo menos 15 minutos. Meu pai teve que
retornar uns 4 quarteirões para encontrar uma cancela que o trem não estivesse
fechando e assim, pouco tempo depois, chegaram.
Minha mãe, ao ver meu estado (fiz questão de tirar o boné e
perdi peso por ficar sozinho em casa, e já era magro...) não sabia se ria ou se
chorava, mas meu pai veio rindo logo que saiu do carro. Fomos embora e eu
falando sem parar sobre a viagem, meu pai perguntando coisas esquisitas sobre
que horas o trem havia passado em Campinas - ele nem sabia que as linhas se separavam
na Lapa - e chegamos em Campos Novos Paulista. Fui direto para um barbeiro
que já se encarregou de passar a máquina zero no corte Larry, com ajuda
(documentada por fotos) do meu pai e da minha mãe.
E se passaram 20 anos e tudo se acabou, mais 15 anos e tudo
se arrasou. Ontem, ao se completarem 35 anos desse dia, com
a Sorocabana sendo mais nada, eu li seu post e imediatamente me veio
na cabeça a música "Killing me softly with this song". Troque
"song" por "notícia do meio ferroviário brasileiro", que ao
invés de "song" nada mais é do que uma marchinha repetitiva e
mal tocada e assim nós, os ferreo-fãs brasileiros e as próprias ferrovias
vamos sendo assassinados devagarinho. E somos impotentes para fazermos qualquer
coisa.
Hoje com 52 anos eu tenho saudades só de duas coisas: Do meu
pai, que faleceu em 2004 e dos passeios de trem que eu fazia pelo Estado. Meu
pai eu tenho certeza que vou vê-lo novamente um dia (me desculpem os que
não acreditam, mas eu estou certo disso - ele está no seu site numa foto em
Matão, também coincidentemente tirada há 36 anos). Mas dos trens, esqueça. Só
no dia que inventarem a tal Máquina do Tempo. Mas vai ter gente querendo fazer
com essa máquina coisas muito mais desinteressantes do que viajar num
Carro Pullman da CP (do Trem R) em meados dos anos 50 ou ir para Santos
com um dos Cometa, Estrella ou Planeta.
É isso, desculpe ter te enchido de tanto texto. Mas pela
coincidência da data tive que fazê-lo. Se achar que seus leitores vão aguentar
isto e quiser publicar no blog, fique à vontade.
Um abraço; Paulo Roberto Filomeno
Lindo texto. Realmente um assassinato o que fizeram com os trens no Brasil!
ResponderExcluirSou de 77 e sempre lamento de não poder viajar de trem pelo estado. Sempre leio que o serviço atrasava, não era dos melhores... mas qual a diferença do que se diz do transporte rodoviário / aéreo de hoje em dia? Hoje pagamos caro por tudo graças também à logística rodoviária. Saudades do que não vivi.
ResponderExcluirViajei com você Paulo, através deste texto maravilhoso.
ResponderExcluirO seu relato, Paulo Roberto Filomeno, me fez viajar no tempo e relembrar todas as viagens que fiz pelos trilhos da Sorocabana, entre a Julio Prestes e Santo Anastácio, da infância à adolescência, e algumas já adulto, casado e com filhos. Às vezes, também tento lembrar daquele cheiro inigualável que o vento trazia, de trem e mato.
ResponderExcluirSobre os cheiros e a dificuldade de explicá-los ... o cheiro do Ozona produzido pelas locomotivas elétricas me dá uma saudade dos tempos que não voltam mais. Belo texto. Parabéns !!
ResponderExcluir