quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

O INCÊNDIO NO SEMINÁRIO EPISCOPAL DE SÃO PAULO

Foto: O Estado de S. Paulo

O texto abaixo foi escrito por Julio Moraes e enviado a mim (e a algumas outras pessoas) por e-mail no dia 13 de novembro último. Julio estava revoltado com o descaso no imóvel. Com algum atraso e com autorização do autor, transcrevo-o logo abaixo.


No último sábado, 11 de novembro de 2012, o antigo Seminário Episcopal de São Paulo sofreu o maior e mais devastador dentre os vários incêndios que já o atingiram.

A quem interessar e tiver paciência, meu depoimento abaixo conta algumas preliminares deste desastre.

Entre 1998 e 2000 conheci este edifício, trabalhando na restauração da contígua Igreja de São Cristóvão, que primitivamente fora a capela do Seminário concluído em 1856 com grande orgulho da pequena cidade, e hoje é um dos raros da sua época e tipo remanescentes em São Paulo. O antigo Seminário já estava internamente isolado da igreja, sub-dividido e alugado a lojas que ocupavam as alas defronte à via pública; confecções de vestidos de noivas ocupavam a grande ala interna e o pavimento superior. Estes estabelecimentos se ampliavam descontroladamente pelo antigo pátio, invadindo-o com "puxados" e improvisando instalações elétricas que por várias vezes haviam originado incêndios, alguns mais graves, outros menos.

Em 2000 colaborei com o saudoso arquiteto Paulo Bastos numa proposta de restauro do edifício, que compatibilizava o resgate da estabilidade física e das características arquitetônicas primitivas com o uso que ele já tinha - e que está incorporado à tradição do bairro - dotando-o de condições de segurança e conforto modernos. A proposta foi recusada pelos responsáveis pela administração do antigo seminário, por motivos que não cheguei a conhecer.

Entre 2000 e 2008 sugeri e auxiliei a direção do Museu de Arte Sacra de São Paulo numa proposta de restauro completo e adaptação do pavimento superior para acomodar algumas instalações suas, deixando o térreo para as lojas e confecções. Tampouco esta proposta foi adiante, novamente por motivos que desconheço.

Em 2008, participando na formação do Curso de Graduação em Conservação e Restauro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUCSP, mais uma vez propus uma parceria com a entidade proprietária do antigo seminário, retomando a proposta básica de restauro de Paulo Bastos, mas instalando ateliês e salas de aula no pavimento superior, deixando as lojas e confecções no térreo, e enfim provendo o restauro arquitetônico. Desta vez, os arquitetos da PUC fizeram vários levantamentos, constatando goteiras, as eternas instalações elétricas improvisadas e a intensa re-infestação da igreja pelos cupins; Paulo Bastos chegou a preparar um anteprojeto, a PUC conseguiu um grande galpão próximo para acomodar as confecções, e a reitora até anunciou oficialmente a abertura do curso com um coquetel no prédio. Pouco mais tarde, um lacônico telefonema da igreja me informou que estava tudo cancelado por ordem superior.

Como milhões de outros paulistanos, continuei a passar diante do prédio, sem ver as ampliações ilegais e instalações perigosas por trás da fachada que apenas decaía. Só me diferenciava o fato de saber do risco e preocupar-me com isso, sem nada poder fazer.

Ontem, enfim a televisão mostrou ao vivo o incêndio de grandes proporções que, sem ter bola de cristal, eu e outros tantas vezes anunciamos. Perdemos mais um patrimônio, nesta cidade tão carente deles.

No domingo, o "Estadão" noticiou que uma primeira fase de restauro estava em conclusão. Infelizmente chegou tarde demais, resta-me juntar minha solidariedade aos colegas que ali trabalhavam.

Aos 35 anos de exercício da profissão de conservador-restaurador, canso-me e quase desanimo ao ver repetirem-se estas histórias, e reincidirem as mesmas situações de risco. Apenas como exemplo, e numa provavelmente inútil tentativa de aviso, recordo ao menos outras duas edificações religiosas tombadas e restauradas no centro de São Paulo, em que até agora a história tem-se repetido de forma semelhante: a igreja de Santo Antônio (que já sofreu dois grandes incêndios), em que, contra todas as nossas recomendações, instalações elétricas improvisadas foram teimosamente refeitas logo depois que terminamos o restauro dos altares e forro; e a igreja da Ordem Terceira do Carmo, em que nem a ampla intervenção de restauro de centenas de metros quadrados de pinturas sacras, integralmente paga pelo IPHAN, pareceu suficiente para ajudar os responsáveis pela igreja a enfim fazerem algo de efetivo pelas goteiras e instalações precárias do edifício.

Sem mais comentários,

Julio Moraes
Conservador-restaurador de bens culturais

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