domingo, 18 de setembro de 2016

SANTANA DOS OLHOS D'ÁGUA (IPUÃ), 1931

Final da carta transcrita mais abaixo (1931)

Ipuã é um município paulista que existe como tal desde 1948. Fica entre Franca e Barretos. Era um distrito que já existia desde meados do século XIX com o nome de Santana dos Olhos D'Água.

A situação dos municípios paulistas (e brasileiros) era muito estranha em 1931 e bastante diferente do que é hoje. O Estado tinha pouco mais de 200 municípios (hoje tem mais de 600) e a divisão era feita de forma totalmente aleatória. 
Como já citei em outros artigos neste blog, meu avô Sud Mennucci escreveu um livro, "Brasil Desunido", que lançaria em 1932, livro este que teve boa parte dele escrito no final de 1930 e no início de 1931 nas páginas do jornal O Estado de S. Paulo.

A partir de 1934, a situação dos municípios paulistas alterar-se-ia radicalmente, com mudanças drásticas nos seus territórios. Meu avô Sud participou da comissão que fez essa redivisão. Há diversos tópicos neste blog (de nome "A História Secreta dos Municípios Paulistas"), postadas há cerca de 2 ou 3 anos.

A carta abaixo dava uma ideia de uma situação que ocorria na época no distrito de Santana dos Olhos D'Água - hoje o município de Ipuã -  e foi transcrita mantendo-se o português da época (aliás, notem a quantidade mínima de acentos, o que era bom). Olhem só a politicagem da época (não que hoje isso não exista), especialmente na mudança de um distrito de um município para outro.

Note-se que São Joaquim é hoje São Joaquim da Barra. Note-se também que, além dos municípios citados abaixo, Santana pertenceu também a Batatais e a Morro Agudo, de acordo com outras fontes por mim consultadas.

Quem a escreveu foi o Sr. Quirino B. de Campos Junior, que residia no distrito em 1931 e aparentemente tinha, ou trabalhava em, uma loja na cidade de Guaira, não longe dali (de acordo com o cabeçalho da carta, Casa Fausto - Fausto Alves de Lima - Guayra - Via Orlandia).

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Sant’Anna dos Olhos D’Agua, 1º de janeiro de 1931
Exmo. Snr. Sud Mennucci
Redacção do Estado de São Paulo

Saudações. Tenho acompanhado com muita attenção os seus artigos intitulados “Brasil desunido”, escriptos no “O Estado de S. Paulo”.

Levado pela admiração que sempre mereceu a sua pena inolvidavel, atrevo-me a repisar um pequeno ponto do seu artigo de hoje. Nada existe mais verdadeiro e mais triste para nós, do que sejam a politicalha que tem avassalado todos os municipios do Brasil. Refiro-me logo ao Brasil porque a miseria politica existe menos em São Paulo do que nos demais estados. O meu velho districto de Olhos D’Agua, creado em 1851, tem sido o maior joguete politico que se poderia imaginar.

Para o senhor fazer uma idéa do que tem sido a vida do districto a que me refiro, eu cito apenas o seguinte: pertenceu a Franca; para satisfazer interesses políticos passou para Nuporanga; ainda pelo mesmo motivo passou para Orlandia; ainda pelo mesmo motivo passou ultimamente para São Joaquim. O districto possui uma renda de oitenta contos; 276 predios na séde; mais de doze mil habitantes; conta com todos os requisitos exigidos pela lei para ser elevado a municipio. Por que? Simplesmente porque a politica não consente. Puseram a principio todos os obstaculos imaginaveis como sejam: mutilação do seu territorio, pagamento de divida imaginaria, divida contrahida antes da annexação do districto, etc. etc. A Camara de São Joaquim teve o desplante de exigir nada mais de trezentos contos de gratificação pela sua emancipação, ainda com sacrificio de uma parte de seu territorio com mais de dois milhões de pés de café. Não consentimos em absoluto com a proposta, porque acceital-a seria sacrificar irremediavelmente, o futuro do novel municipio. Como recompensa pelos nossos anseios de liberdade, tivemos as escolas estadoais do districto suprimidas. Um districto com doze mil habitantes, com uma lavoura calculada em seis milhões de pés de café em producção e com uma só escola estadoal. Isto tudo não é uma miseria? Não é uma infamia?

Appelamos para o Congresso, para o presidente do estado, mas todos faziam ouvidos moucos. Era o silencio revoltante. Era a espionagem em volta dos nossos actos para saber em que pé se achavam os trabalhos para emancipação, e mais fácil poderem impedir.

Eu não estou fazendo critica infundada, porque tudo o que estou escrevendo está sobejamente provado com documentos entregues á Secretaria da Justiça. O que tem acontecido comnosco, tambem está se passando com muitos outros districtos, sacrificados, humilhados pela politica nefasta. Como contra peso porem, existem districtos emancipados para perseguição politica de municípios rebeldes, e para protecção de políticos districtaes. Não tomará o governo revolucionario uma medida que desembarace esses districtos opprimidos? Uma medida geral que abranja a todos? Si vinte contos é pouco para que um districto se possa mantes, por que o governo não eleva para 50 contos? Uma lei por exemplo que estabelecesse que todos os logares que tivessem renda de cincoenta contos de reis e os demais requisitos seriam elevados automaticamente a municipio. Dessa forma ficando prejudicados os municípios que não tivessem essa renda. Seria uma medida de alta justiça, que o actual interventor federal já devia ter tomado. Ninguem ignora que os municípios são as bases do regimem. Abandonar os districtos como o estão fazendo, é provocar  uma revolta em desespero de causa, para que os districtos se elevem pela força. Uma revolta contra os municípios que os estão oprimindo, usurpando a sua vida.

Espero que o senhor desenvolvendo bem esse assumpto, chame a attenção do actual governo para a situação angustiosa dos districtos.

Olhos D’Agua não tem autoridade, não tem escolas, não tem estradas publicas, e o abandono é tão revoltante, tão miseravel, que só e unicamente ao facto de ter muita reserva de vitalidade, se deve o districto ainda não ter desaparecido. E porque o governo olhando um pouco para esses enteados, não nomeia uma comissão de syndicancia para apurar a situação desses logares? Essas comissões com isenção de animo apresentariam um relatorio das possibilidades e neccesidades e dos direitos de emancipação que assistem aos districtos de paz.

Desculpe-me a massada de ter ocupado demasiadamente o seu precioso tempo. Uns minutos de sacrificio em beneficio do estado.

Com a mais viva admiração subscrevo-me

Do patrício e creado, obrigado,

Quirino B. de Campos Junior"

Um comentário:

  1. Que bonito ver um português escrito assim. Comparado ao que vemos hoje na internet, parece até escrito na era imperial do Brasil.

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